Teatro do Bolhão abriu as portas do seu novo palácio

O novo Teatro do Bolhão, instalado num esplendoroso palácio portuense do século XIX que demorou uma década a recuperar, abriu as portas esta sexta-feira, dia mundial do teatro.

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“Costumo dizer aos nossos alunos que vão estudar na escola de teatro mais bonita do mundo”, conta António Capelo. Maria João Gala
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Final feliz para uma história de persistência que envolveu campanhas nas redes sociais para pagar uma escadaria e angariação de mecenato um bocadinho à má fila, como essa viagem de Alfa Lisboa-Porto em que o actor António Capelo, director da companhia Teatro do Bolhão, convenceu um ocasional companheiro de viagem, que não conhecia de lado nenhum, a pagar os 700 metros quadrados de soalho do novo auditório de 140 lugares construído nas traseiras do palacete.

Depois de uma conferência de imprensa para apresentar a programação até Julho, a inauguração da nova sede começou às 19h00 com uma visita guiada à casa onde o riquíssimo comerciante António de Sousa Guimarães – que mandou erguer este palacete em 1844 – dava as mais badaladas e concorridas festas a que a elite portuense assistiu na segunda metade do século XIX. E como se impunha no dia mundial do teatro, os anfitriões da festa subiram depois ao palco para fechar o programa com a estreia de Édipo, uma encenação do japonês Kuniaki Ida da peça de Sófocles, interpretada por apenas três actores e um coro: António Capelo, João Paulo Costa e João Cardoso assumem múltiplos papéis, como faziam os actores gregos da Antiguidade.

Recuperar o degradado palácio do conde do Bolhão e adaptá-lo às necessidades de uma escola e companhia de teatro custou 2,8 milhões de euros, e a soma não parece exagerada quando olhamos para a sucessão de salas com os seus estuques, pinturas e talhas, originalmente criados por alguns dos melhores artistas portugueses da época.

“Costumo dizer aos nossos alunos que vão estudar na escola de teatro mais bonita do mundo”, conta António Capelo. E é bem capaz de ter razão. Se o Porto já tinha na Lello uma das mais bonitas livrarias do planeta, procuradíssima por turistas, o risco é que o serviço de educação do Teatro do Bolhão, que será responsável por um programa regular de visitas guiadas bilingues ao edifício, se veja em breve sem mãos a medir.

A recuperação do edifício foi projectada pelo arquitecto José Gigante, que trabalhou em estreita colaboração com os responsáveis da escola. Uma das dificuldades a vencer era a transformação de um anexo nas traseiras, onde funcionava a Litografia do Bolhão, no auditório principal da companhia (o salão nobre do edifício original será usado para peças mais pequenas e  experimentais, explica Capelo). Gigante optou por literalmente descolar o anexo do edifício, criando entre os dois uma espécie de rua, ao ar livre.

Sonhado pelos responsáveis da Academia Contemporânea do Espectáculo há uma dúzia de anos, o projecto, que implicou antes de mais a compra do edifício pela Câmara do Porto, enfrentou todo o tipo de dificuldades e houve momentos em que, confessa Capelo, pensaram mesmo que “ia morrer na praia” por falta de financiamento. Se a obra principal foi essencialmente paga por fundos europeus e contribuições dos ministérios da Educação e da Cultura, e ainda da autarquia, foi preciso arranjar um mecenas diferente para pagar o complexo restauro de cada uma das principais salas, e Capelo conta, divertido, que conseguiu um inesperado financiamento, com o qual pagou o chão do novo auditório, numa viagem de comboio. “Percebi às tantas que o senhor que vinha ao meu lado era o presidente da Associação das Indústrias de Madeira e Mobiliário de Portugal, e disse-lhe: ‘Então temos de conversar’…”.

E no fim ainda faltavam 35 mil euros para restaurar os 68 degraus da escadaria principal. Já não sabendo a quem recorrer, Capelo lançou, inicialmente na sua própria página do Facebook, a campanha de angariação de fundos Degrau a Degrau. Podia contribuir-se com apenas um euro, mas dez euros já davam direito a ver o nome inscrito nos degraus, cem ainda compravam um ano de acesso livre aos espectáculos, e por 500 comprava-se um degrau inteiro.

É divertido ir reparando nas inscrições enquanto se sobe as escadas e ler os nomes de cafés, mercearias e hotéis a par de sindicatos, associações várias e um grande número de particulares. Um dos degraus parece a direcção (antiga e actual) do Bloco de Esquerda, registando as contribuições de Francisco Louçã, Marisa Matias, Renato Soeiro, Catarina Martins ou Alda de Sousa. Outro foi integralmente recuperado a expensas de um grupo de amigos de Pedorido, em Castelo de Paiva, a terra natal de Capelo. E se levantar os olhos do chão e começar a reparar nos candeeiros, saiba que muitos deles já em tempos iluminaram a sala e os corredores do Teatro Rivoli.

Enquanto a escola se vai mudando lentamente para a sua nova casa, que só ocupará verdadeiramente a partir do próximo ano lectivo, a companhia Teatro do Bolhão tem já agendados vários espectáculos para os próximos meses, alguns a apresentar no grande auditório, outros no salão nobre. A ideia, diz Capelo, “é revisitar coisas que para nós foram emblemáticas”. Depois de Édipo, irá ser possível rever Começar a Acabar, uma encenação de João Lagarto a partir de Samuel Beckett, um espectáculo de teatro musical, A Revolução Dos Que Não Sabem Dizer Nós, um espectáculo de Joana Providência, Território e, única estreia até Julho, Almas Mortas, a partir da novela homónima de Gogol. A estas peças somar-se-ão ainda vários concertos e outros espectáculos musicais que o Teatro do Bolhão irá acolher no âmbito de uma parceria com a associação cultural Turbina.

O palácio do conde do Bolhão, que a Câmara do Porto cedeu ao Teatro do Bolhão por 50 anos, não é apenas um edifício esplendoroso, tem também uma história interessante. A imagem pública do conde, um homem que albergou mais do que uma vez a família real, começou a dado momento a declinar, e o comerciante nobilitado chegou mesmo a pagar ao seu amigo Camilo Castelo Branco para escrever boas coisas a seu respeito, numa altura em que a mulher lhe fugira, acusando-o de lhe bater. Acusado de falsificar moeda no Brasil, acabou arruinado e teve de vender o palácio a um credor, o visconde de Fragozelas.

Em 1890, Emílio Biel, fotógrafo da Casa Real e um dos grandes pioneiros da fotografia portuguesa, comprou o edifício e instalou ali o seu estúdio. Injustamente atacado no início da I Guerra por ser alemão, foi nesta casa que morreu, amargurado, em 1915. O palácio terá ainda sido efemeramente arrendado por Raul de Caldevilla, pioneiro da publicidade e fundador da Invicta Filmes, que ali terá instalado a sua empresa publicitária, antes de ser adquirido pelos proprietários da Litografia do Bolhão, que ali funcionou durante largas décadas até ao início dos anos 90. 

Notícia corrigida no dia 30 para alterar a data em que o conde do Bolhão mandou erguer o seu palácio: 1844 e não, como se escreveu por lapso, 1944.

 

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