Exercícios de suspensão

Uma exposição intrigante, cheia de insinuações, no regresso de Luísa Cunha à Galeria Miguel Nabinho

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Contemplar o horizonte marítimo é contemplar uma grandeza que a nossa vista nunca poderá alcançar, parecem sugerir as imagens de Luísa Cunha na sua nova exposição

A actividade artística de Luísa Cunha tem conhecido muitas variações materiais. Interessa-lhe explorar muitas matérias, porque essa diversidade material corresponde a diferentes modalidades expressivas. Uma característica de tal modo forte que nunca se sabe bem o esperar da suas exposições: podem ser fotografias, vídeos, desenhos, pinturas ou peças sonoras. No entanto, há dois elementos comuns, a saber: a maneira como inscreve a linguagem no corpo das obras ou nos seus títulos, e uma certa ideia de absurdo que diz respeito à forma como esta artista lida (alterando, invertendo, desrespeitando) com os protocolos da experiência das obras de arte e com todas as expectativas existentes sobre o que é e o que deve dizer uma obra de arte. E é a partir destas duas ideias que podemos entender a sua nova exposição na Galeria Miguel Nabinho, A Bit of Matter and a Little Bit More.

No seu conjunto, nesta nova exposição a relação com o mar parece ser o denominador comum, mas não se trata tanto do mar (ou do rio, num dos casos) e sim de um confronto com o vazio e o indeterminado que o mar convoca. Contemplar o horizonte marítimo é contemplar uma grandeza que a nossa vista nunca poderá alcançar, ou seja, trata-se da experiência de inadequação do nosso aparelho sensível à grandeza do mundo. Dar-se conta desta inadequação significa uma particular compreensão da nossa finitude originária, uma consciência importante para esta artista e que muitas vezes surge tematizada em obras cujo coração é formado pela tentativa de dizer o mundo e não o conseguir. Uma impotência significativa, porque não só apresenta os limites da nossa linguagem, mas revela simultaneamente a irresistível vocação humana de ultrapassar a linguagem possível e seguir em direcção a um qualquer incondicionado, isto é, tentar dizer o que não se deixa dizer. 

Esta parece ser a situação da escultura sonora FRYDM! Uma caixa de cartão colocada no centro da sala que repete, ininterruptamente, o que nos parece ser a palavra “freedom” (liberdade) e a repetição contínua (em loop) colocam-nos na situação poética de encontrar o sentido no dizer da palavra, no seu ritmo e na sua matéria sonora. Mas este dizer não se destina a aprisionar, isto é, a cristalizar e a fixar a palavra, porque a partir de determinado momento é-se lançado para lá da palavra, da voz e do dizer e só se tem acesso à subtil vibração do ar. Trata-se de um movimento, muito importante no trabalho desta artista, de espacialização da linguagem, do sentido e, claro, da arte. 

Mas estas não são peças existenciais ou metafísicas e, tal como sugerido pelo título de uma das obras “It is what it is”, estas obras são o que são, tudo está à vista, sem segredos escondidos e sem exigir uma interpretação destinada à descoberta de significados ocultos. O título desta série de fotografias não significa uma tautologia vazia, mas a consciência de que, como diz Hofmannsthal, é preciso esconder a profundidade mas que o único esconderijo possível é a própria superfície. Uma equivalência entre superfície e profundidade que não corresponde a uma retórica estética, mas faz da reunião do concreto e do abstracto um programa artístico. Por isso, a simplicidade dos gestos desta artista não é vazia; antes faz da obra de arte o lugar de encontro entre as dimensões aparentemente inconciliáveis dos conceitos e das ideias com as coisas materiais e sensíveis do mundo.

Trata-se de uma exposição intrigante, cheia de insinuações, e muito atmosférica. A peça sonora imprime qualidades espaciais importantes e, depois, as fotografias sugerem acções/situações que ficam em suspenso. Na realidade, são foto-acções em que as personagens parecem estar no início de uma acção a ser revelada pela sequência de imagens, mas depois a acção não se resolve. Fica tudo numa tensão pairante e num estado contemplativo. Este estado de não-resolução sugere uma particular apresentação da arte enquanto exercício de equilíbrio feito por um funâmbulo que, concentrada e esforçadamente, caminha em cima de um cabo estendido sobre um abismo. Um andar que implica uma infinitude de pequenos ajustamentos — a condição do poder andar. A obra de Luísa Cunha está nesta situação de caminhar sobre o abismo da possibilidade de ainda podermos dizer a linguagem.

 

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