Humor e sacanagem com as letras todas
Retrato de uma geração que viveu os anos 60 e 70 no Rio de Janeiro e tresloucou. Viagem ao mundo da cumplicidade masculina por Fernanda Torres, a actriz que chegou ao mundo da literatura e convenceu
Uma das publicidades mais engraçadas jamais feitas a um livro é aquela que a Companhia das Letras concebeu para lançar o primeiro romance de Fernanda Torres. Na imagem do cartaz, a actriz/escritora brasileira aparece a segurar o seu primeiro livro (que lhe tapa a cara, só se vêem os olhos) e, ao lado, a frase: “Fernanda Torres em seu novo papel: o impresso.”
Não havia como fugir à questão, Fernanda era até aqui conhecida pelos seus trinta e tal anos de uma carreira de sucesso no cinema, nos palcos, na televisão. E se os brasileiros já tinham descoberto a sua escrita, quer quando publicou, em Abril de 2012, na revista brasileira Piauí, um texto longo intitulado “Minha cerimônia do adeus” - memórias da experiência, aos 23 anos, da rodagem do filme Kuarup, de Ruy Guerra, baseado no romance de Antônio Callado -, quer pelas suas crónicas na Folha de S. Paulo ou na revista Veja Rio, a obra seria sempre vista como um livro escrito por uma actriz.
O escritor João Ubaldo Ribeiro (1941-2014), um dos seus amigos, está entre os “velhos” a que Fernanda dedica o romance. E a determinada altura aconselhou-a mesmo a não se meter nisto de publicar livros porque “o mundo literário é muito violento”, dizia-lhe. Era uma prova de fogo, portanto. Que Fernanda ultrapassou com distinção. Fim, o seu primeiro romance, já valia a pena existir mesmo que se fosse só pelo primeiro capítulo. Nele Fernanda capricha no ritmo, no humor e na carioquice. Somos sugados, sem fôlego, para a vida daquele octogenário do Rio de Janeiro e para a sua maneira de ver o mundo. “Álvaro”, assim se chama esse primeiro capítulo (que começou por ser um conto sobre a velhice encomendado pelo realizador Fernando Meirelles) conta o último dia da vida de um dos cinco amigos cariocas, que são as personagens principais deste romance. Escrito na primeira pessoa, é um monólogo (“Gostava do Neto, do Ciro, do Sílvio e do Ribeiro. Homem não fala, cada um diz uma imbecilidade qualquer, a gente ri, entorna, e pronto, foi uma noite extraordinária. Mulher está sempre no encalço da grande ocasião.” pág. 21) e a partir dele o leitor é apresentado aos quatro amigos de Álvaro (1929-2014), que se sucederão nas cinco partes do romance – cada uma com os nomes dos velhos “Sílvio”(1933-2009), “Ribeiro” (1933-2013), “Neto” (1929-1992), “Ciro” (1940-1990) - e no epílogo intitulado “O Próximo” e que nos remete ao princípio do livro.
Fernanda Torres alterna entre a primeira pessoa, contando os minutos finais da vida desses cinco brasileiros, e a terceira, dando o ponto de vista das outras personagens – as mulheres, filhas, amantes, amigas, mães, enfermeiras, e o Padre Graça, a personagem fora do baralho e que tem qualquer coisa de Padre Nando, personagem do romance de Antônio Callado, adaptado ao cinema por Ruy Guerra, filme importantíssimo na vida da actriz que diz que não era bom mas lhe deixou marca indelével.
Em Fim, à medida que avançamos na leitura tudo se vai encaixando. E ao longo do romance ouvimos ecos de situações que nos foram contadas em capítulos anteriores e nos são apresentadas mais tarde de pontos de vista diferentes. No entanto, se bem que é inteligente a forma como Fernanda Torres constrói o seu romance, essa estrutura, por vezes, acaba por ser também uma prisão e origem de alguma da sua fragilidade.
A determinada altura, na página 68, há ecos do poema Quadrilha de Carlos Drummond de Andrade e isso é paradigmático do tema do livro que se debruça sobre o hedonismo carioca, a decadência, o humor e a tragédia da vida de personagens sem grandeza. A não ser na morte. Ali se narra uma orgia. A personagem Sílvio conta o dia em que “teve uma epifania” numa penthouse do Flamengo: “(…) Foi o fim da juventude. Naquela sala neoclássica, com a boca enfiada na boceta da Brites, que se ocupava de beijar a Suzana, que dava para um alemão barbudo, que sarrava os peitos da japonesa de São Paulo, que admirava o aglomerado de corpos enroscados no sofá da frente, eu pensei: Esse é o pico, o ápice da minha existência. Decidi, ali, abandonar de vez o manual do bom comportamento, que te impede de comer o amigo, a mulher do amigo, a mãe e o pai do amigo. Uns cornos mansos que desconhecem o deleite da amoralidade.” Todo o livro trata de sacanagem com as letras todas.