V - A + F = 2, a fórmula de Euler para os poliedros
Nascido em Basileia (Suíça) no século XVIII, Leonhard Euler reparou em algo que antes tinha escapado a todos. Descobria assim uma das equações mais belas da matemática: a fórmula para os poliedros. David S. Richeson, professor de matemática no Dickinson College, na Pensilvânia, EUA, conta esta história num livro que chega este sábado às livrarias portuguesas, com muitos exemplos da aplicação da fórmula.
O grande matemático suíço Leonhard Euler (1707-1783) — cujo apelido se pronuncia “oiler” — descobriu-a. A 14 de Novembro de 1750, numa carta ao seu amigo, o especialista em teoria dos números Christian Goldbach (1690-1764), Euler escreveu: “É surpreendente que estas propriedades gerais da estereometria [geometria sólida] não tenham, tanto quanto sei, sido notadas por ninguém.” Nesta carta Euler descreveu a sua observação, e um ano mais tarde forneceu uma demonstração. Esta observação é tão básica e fundamental que hoje é conhecida por “fórmula de Euler para poliedros”.
Um poliedro é um objecto tridimensional [como um cubo e uma bola de futebol, que, neste último caso, é um icosaedro truncado]. É composto por polígonos planos chamados faces. Cada par de faces adjacentes intersecta-se ao longo de um segmento de recta, chamada uma aresta, e os extremos das arestas encontram-se nos cantos, ou vértices. Euler observou que o número de vértices, arestas e faces (V, A e F, respectivamente) satisfazem sempre uma relação aritmética simples e elegante: V - A + F = 2.
O cubo é provavelmente o poliedro mais conhecido. Uma contagem rápida mostra que tem seis faces: um quadrado na parte superior, um quadrado na parte inferior, e quatro quadrados laterais [estamos a considerar que o cubo está assente em repouso numa superfície horizontal, como por exemplo uma mesa]. As fronteiras destes quadrados formam as arestas. Contando-as, encontramos 12 no total: quatro na face de cima, quatro na de baixo, e quatro arestas verticais nas faces verticais. Os quatro cantos superiores e os quatro cantos inferiores formam os oito vértices do cubo. Assim, para o cubo, V = 8, A = 12, F = 6 e, naturalmente, 8 - 12 + 6 = 2, tal como previsto.
Para a bola de futebol em forma de poliedro, a contagem é mais demorada, mas podemos ver que possui 32 faces (12 pentágonos e 20 hexágonos), 90 arestas e 60 vértices. Novamente, 60 - 90 + 32 = 2.
A geometria das membranas de borracha
Para além do seu trabalho com poliedros, Euler fundou a área da analysis situs, hoje conhecida como topologia. A geometria é o estudo dos objectos rígidos. Os geómetras estão interessados em medir quantidades, tais como áreas, ângulos, volumes e comprimentos. A topologia, que herdou a designação popular “geometria das membranas de borracha”, é o estudo das formas maleáveis. O objecto de estudo de um topólogo não precisa de ser rígido ou de ter propriedades métricas. Os topólogos estão interessados em estudar propriedades como a conectividade, e investigar a existência de “buracos”, ou a posição de um objecto dentro de outro. Quando um palhaço dobra um balão para lhe dar a forma de um cão, o balão permanece a mesma entidade topológica, embora seja geometricamente muito diferente. Mas quando uma criança rebenta o balão com um lápis, deixando um notável orifício na sua superfície, o balão deixa de ser topologicamente o mesmo. Três exemplos de superfícies topológicas: a esfera, o donut em forma de toro e a faixa de Möbius.
Os estudiosos da jovem área da topologia, fascinados com a fórmula de Euler, tentaram aplicá-la a estas superfícies topológicas. Surgiu então a pergunta natural: onde estão os vértices, arestas e faces numa superfície topológica? Os topólogos, ignorando as rígidas regras estabelecidas pelos geómetras, permitiram que, neste caso mais geral, as faces e arestas sejam curvas. [Uma esfera pode ser, por exemplo, decomposta] em regiões “rectangulares” e triangulares”. A decomposição é obtida desenhando 12 linhas de longitude constante, que se encontram nos dois pólos (Norte e Sul), e 7 linhas de latitude constante. Assim, este globo tem 72 faces rectangulares curvas, 24 faces triangulares curvas (localizadas junto aos pólos Norte e Sul), perfazendo um total de 96 faces. E tem 180 arestas e 86 vértices. Assim, tal como no caso dos poliedros, verificamos que: V - A + F = 62 - 180 + 96 = 2.
Da mesma forma, a bola de futebol usada no Mundial de Futebol de 2006, que consiste em seis faces com a forma do número oito, cada uma com quatro arestas curvilíneas, e oito regiões hexagonais disformes, também satisfaz a fórmula de Euler (pois tem V = 24, A = 36 e F = 14).
Chegados a este ponto, somos tentados a conjecturar que a fórmula de Euler se aplica a qualquer superfície topológica. No entanto, se decompusermos um “toro” em faces rectangulares curvadas, obtemos um resultado surpreendente. Esta decomposição é obtida colocando dois círculos em volta do orifício central do “toro” e 4 círculos em torno do seu tubo circular. A decomposição tem 8 faces de quatro lados, 16 arestas e 8 vértices. Aplicando a fórmula de Euler obtemos: V - A + F = 8 - 16 + 8 = 0, em vez do esperado número 2.
Se construíssemos uma decomposição diferente do toro, iríamos descobrir que a mesma soma alternada dá novamente zero. Isso dá-nos uma nova fórmula de Euler para o toro: V - A + F = 0.
Podemos mostrar que qualquer superfície topológica tem a “sua própria” fórmula de Euler. Não importa se decompomos a superfície de uma esfera em 6 ou 1006 faces, pois quando aplicamos a fórmula de Euler obtemos sempre o número 2. Da mesma forma, se aplicarmos a fórmula de Euler a qualquer decomposição do toro, obteremos 0. Este número especial pode ser utilizado para distinguir as superfícies, assim como o número de rodas pode ser utilizado para distinguir os veículos que circulam nas estradas. Cada automóvel tem quatro rodas, cada camioneta tem dezoito rodas, e cada motorizada tem duas rodas. Se um veículo não tiver quatro rodas, então não é um automóvel, se não tem duas rodas, deduz-se que não é uma motorizada. Da mesma forma, se V - A + F não é 0, então topologicamente a superfície não é um toro.
A soma V - A + F é uma quantidade intrinsecamente associada à forma em estudo. Na terminologia usada pelos topólogos, dizemos que é um “invariante” da superfície. Devido a esta notável propriedade de invariância, chamamos ao número V - A + F, o número de Euler de superfície. Assim, o número de Euler de uma esfera é 2, e o número de Euler de um toro é 0.
O facto de cada superfície ter o seu próprio número de Euler pode parecer uma mera curiosidade matemática, algo para contemplar e comentar “não é fixe?”, enquanto seguramos uma bola de futebol, ou olhamos para uma cúpula de uma igreja. Mas não é certamente o caso. Como veremos, o número de Euler é uma ferramenta indispensável no estudo de poliedros, bem como na topologia, geometria, teoria de grafos e sistemas dinâmicos; e tem também algumas aplicações muito elegantes e inesperadas.
Um nó matemático é como um pedaço de corda entrelaçado e sem extremidades. Dois nós dizem-se equivalentes se um deles pode ser deformado no outro sem cortar ou colar a corda. Tal como usamos o número de Euler para ajudar a distinguir duas superfícies, com um pouco de criatividade, podemos também usá-lo para distinguir nós. (…)
[No exemplo de um] mapa [com] as direcções do vento, num certo instante, à superfície da Terra, há um ponto na costa do Chile onde o vento não está a soprar. Este ponto está localizado num certo local dentro do vórtice que gira no sentido horário. Podemos provar que há sempre pelo menos um ponto na superfície da Terra onde não há vento. Isto não é consequência da compreensão da meteorologia, mas sim da compreensão da topologia. A existência deste ponto de acalmia decorre de um teorema que os matemáticos designam por “teorema da bola cabeluda”. Se pensarmos nas direcções do vento como fios de cabelo sobre a superfície da Terra, então deve haver algum ponto onde o cabelo não está “penteado”. Coloquialmente, dizemos que “não se pode pentear o pêlo de um coco”. (…) O número de Euler permite-nos estabelecer esta ousada afirmação.
Há um problema antigo e interessante que pergunta quantas cores são necessárias para colorir um mapa de tal maneira que cada par de países com uma fronteira comum não seja da mesma cor. Considere um mapa em branco dos Estados Unidos comece a colori-lo com lápis de cor de forma arbitrária. Irá rapidamente descobrir que a maior parte do país pode ser colorida usando apenas três cores, mas que uma quarta cor é necessária para completar o mapa. Por exemplo, uma vez que um número ímpar de estados rodeiam o Nevada, vão ser necessárias três cores para colori-los; assim, terá que usar um quarto lápis de cor para o estado do Nevada. Se formos cuidadosos, poderemos concluir a coloração sem o uso de cinco cores — quatro cores são suficientes para todo o mapa dos Estados Unidos.
Foi conjecturado que qualquer mapa pode ser colorido com quatro cores ou menos. Esta conjectura surpreendentemente difícil tornou-se conhecida como o problema das quatro cores [Francis Guthrie (1831-1899), um recém-licenciado em matemática, reparou que todas as províncias de Inglaterra poderiam ser pintadas com apenas quatro cores, questionou-se sobre se isso seria sempre verdade, e formulou a conjectura das quatro cores, segundo a qual todos os mapas podem ser pintados com quatro cores ou menos de modo a que não haja países vizinhos com a mesma cor.]. (…) A história fascinante [deste problema] terminou com uma controversa demonstração em 1976, na qual o número de Euler desempenhou um papel fundamental.
Apenas e só cinco sólidos regulares
A grafite e o diamante são dois materiais cuja constituição química é inteiramente formada por átomos de carbono. Em 1985, três cientistas — Robert Curl Jr., Richard Smalley e Harold Kroto — abalaram a comunidade científica, ao descobrir “uma nova classe de moléculas de carbono”. Eles chamaram a estas moléculas fulerenos, em homenagem ao arquitecto Buckminster Fuller, inventor da cúpula geodésica. Este nome foi escolhido porque os fulerenos são grandes moléculas poliédricas que se assemelham a estruturas arquitectónicas. Pela descoberta dos fulerenos, os três homens foram galardoados com o Prémio Nobel da Química em 1996. No fulereno, cada átomo de carbono liga-se exactamente a três vizinhos, e os menores ciclos de átomos de carbono formam pentágonos ou hexágonos. Inicialmente Curl, Smalley e Kroto descobriram fulerenos com 60 e com 70 átomos de carbono, mas outros fulerenos foram descobertos mais tarde.
O fulereno mais abundante é o C60, uma molécula com a forma de uma bola de futebol típica, a forma que eles apelidaram de “fulereno de Buckminster”. É notável que, se esquecermos a química e soubermos apenas a fórmula de Euler, somos capazes de concluir que há certas configurações de átomos de carbono que são impossíveis num fulereno. Por exemplo, cada fulereno, independentemente do número de átomos, tem exactamente 12 ciclos pentagonais de carbono, embora o número de ciclos hexagonais não seja sempre o mesmo.
Ao longo de milhares de anos o homem sentiu-se atraído pela beleza sedutora dos sólidos regulares — poliedros cujas faces são polígonos regulares, todas idênticas. Os gregos descobriram esses objectos, Platão incluiu-os na sua teoria atómica, e Kepler baseou um modelo inicial do sistema solar nestes sólidos. Parte do mistério que envolve estes cinco poliedros reside em serem poucos — nenhum outro poliedro, para além destes cinco, satisfaz os rigorosos requisitos de regularidade. Uma das aplicações mais elegantes da Fórmula de Euler é a demonstração, muito curta, de que existem apenas cinco sólidos regulares.
Apesar da importância e beleza da fórmula de Euler, esta é praticamente desconhecida pelo público geral. Ela não aparece no currículo usual que é ensinado nas escolas. Alguns alunos do ensino secundário poderão saber esta fórmula de Euler, mas a maioria dos alunos de matemática não encontram esta relação até entrarem na universidade.
A fama na matemática é uma coisa curiosa. Alguns teoremas são bem conhecidos porque são repetidamente incutidos nas cabeças dos jovens alunos: o teorema de Pitágoras, a fórmula resolvente do segundo grau, o teorema fundamental do cálculo. Outros resultados são colocados no centro das atenções porque resolvem um famoso problema em aberto. O último teorema de Fermat manteve-se em aberto por mais de três séculos até que Andrew Wiles surpreendeu o mundo com a sua demonstração em 1993, o problema das quatro cores foi enunciado em 1853 e só foi resolvido por Kenneth Appel e Wolfgang Haken em 1976. A famosa conjectura de Poincaré foi proposta em 1904 e constitui um dos Problemas do Milénio do Clay Mathematics Institute — uma colecção de sete problemas considerados tão importantes que quem os resolver receberá um milhão de dólares. Este prémio será previsivelmente atribuído a Grisha Perelman, pela sua demonstração da conjectura de Poincaré em 2002 [após a edição original deste livro, este prémio foi de facto atribuído a Perelman, embora ele o tenha recusado]. Outros factos matemáticos são bem conhecidos devido à sua interdisciplinaridade (por exemplo, a sequência de Fibonacci na natureza) ou pela sua importância histórica (a infinitude dos números primos, a irracionalidade do número Pi).
A fórmula de Euler merece ser tão bem conhecida como estes grandes teoremas. A sua história é muito rica, e muitos dos maiores matemáticos do mundo contribuíram para o seu desenvolvimento. É um resultado profundo, e a nossa apreciação dessa profundidade vai aumentando com o grau de sofisticação matemática.
Esta é a história do belo teorema de Euler. (…) Esta fórmula, que passou muito tempo despercebida de todos, tornou-se um dos teoremas mais queridos da matemática.
A Pérola de Euler – A Fórmula dos Poliedros e o Nascimento da Topologia
Autor: David S. Richeson
Tradução: Carlos Florentino
Revisão científica: Jorge Buescu
Editora Gradiva
344 páginas; 17,10 €