Um apartamento, um artista. Multipliquemos o número por cinco e estamos dentro do Flattered — junto ao mar, em plena Foz do Douro, no Porto —, uma galeria de arte que não é uma galeria de arte. Na sua essência, o espaço é um projecto turístico de alojamento local, um edifício histórico recuperado segundo um projecto dos Arquitectos Barbosa & Guimarães cujos interiores têm a assinatura do arquitecto José Carlos Cruz. "Na génese do projecto sempre quisemos ter arte dentro dos apartamentos", explicou ao P3 Miguel Mateus, responsável por esta mistura fina que já tem como "vizinhos" Duarte Amaral Netto, Gonçalo MAR, ±MAISMENOS±, Paulo Arraiano e Pedro Matos.
Cada apartamento, espaço minimal de esconderijos e linhas rectas com ocupação máxima de cinco pessoas, conviveu durante alguns dias com um artista, que deixou marcas evidentes. "São quartos de autor" que serão utilizados maioritariamente por visitantes estrangeiros. "Ainda existe uma barreira entre as galerias tradicionais e as pessoas. Aqui ela esbate-se". As obras de arte ficarão patentes durante dois anos, podendo ser adquiridas quer pelos hóspedes, quer pelo público em geral.
Gonçalo MAR
"A vida, o tempo, a morte e a nossa ligação com tudo o que nos rodeia". Gonçalo MAR procurou "uma ligação mais ou menos directa e de fácil compreensão". "Isto porque o artista não vai estar cá para explicar a peça nem sequer há uma folha de sala." O que aqui existe de novo é o conceito Flattered, que "não é uma galeria, é um espaço habitado". "As peças vivem fora do espaço de apresentação que é uma galeria. Estas peças já estão a conviver com o espaço. São viagens diferentes. A ligação é directa." O tempo de vida das medusas, a pulsação de um tronco de árvore cortado como um pedaço de carne ou um novelo, um cérebro, uma corda. O apartamento de MAR "faz-te pensar". Trata-se de uma "experiência abstracta que não consegues definir. É um 'close-up'".
Paulo Arraiano
Sentimos o mar — janelas escancaradas ou cortinas corridas. As peças de Paulo Arraiano fazem parte da colecção "Cold Front" e têm a ver com uma narrativa que fala da relação do corpo com o espaço. Aqui, o pincel praticamente não toca na tela, que pode ser "um corpo nu ou a crosta terrestre". Action panting e movimento. "São movimentos do corpo. É um trabalho humilde que não tenta imitar nada. Apenas me comporto como o planeta se comporta", explica Paulo Arraiano perante os seus "zoom in" e "zoom out" cartográficos que abrem mais janelas no apartamento. "A minha mulher Diana Coelho, performer e bailarina, tem tinta depositada no próprio corpo e vai criando paisagens e cartografias através da respiração e do movimento. É um processo instintivo quase infantil. Uso cores que têm a ver com o Norte e com a energia da água. Estou só a recordar às pessoas aquilo que já existe."
MAISMENOS
Limpem bem os pés no tapete da entrada. Aqui esteve em residência artística ±MAISMENOS±, versão "politicamente correcta". Isso existe? "Atenção! Isto é uma casa e, ainda por cima, vai ter um inquilino", responde "mais comedido" Miguel Januário, enquanto espalha "armadilhas" pela sua "galeria". As notas, as latas de nada (o frigorífico nunca estará vazio) e outros "statements" que nos últimos tempos pautaram o trabalho de intervenção deste artista. "É um resumo do meu trabalho", anota Januário, preocupado em "não ser muito político, nem chocar ninguém". Isso existe? To buy or not to be. "Durante dois anos vão estar aqui '500' pessoas diferentes. Temos que deixar as peças de forma a que complementem a beleza arquitectónica do espaço, mas também de forma a que o espaço continue a ser funcional".
Duarte Amaral Netto
Divididas por um patamar de escadas, as duas zonas do apartamento com assinatura Duarte Amaral Netto contam diferentes histórias. "É o maior apartamento. Por isso decidi não me concentrar num período da minha carreira, mas diversificar." Para a sala e zona de estar, o fotógrafo escolheu "algo menos pessoal, mais leve e abstracto", que não interferisse com o ambiente (uma fotografia do Ginásio Clube Português, em Lisboa), deixando para a "cave" "algo mais inimista e reservado, propício à narrativa". "Para o quarto guardei trabalhos que têm mais a ver com a esfera do privado, do íntimo e da ficção. As pessoas têm que imaginar e puxar por outras histórias". Duarte também gosta de poder contrariar "a ordem natural das coisas": a peça está num espaço comercial e depois é levada para casa. "Numa galeria, as ligações entre os trabalhos são planeados de uma forma. Aqui é ao contrário. E isso é interessante. Sou quase um decorador de interiores [risos]. Se as pessoas quiserem comprar, já viveram com elas e já as vêm situadas num ambiente diferente do da galeria. As peças ganham um convívio prolongado que não têm na galeria, um espaço mais impessoal onde as pessoas as apreciam escassos minutos ou segundos. Gosto de fazer exposições, mas eventualmente sei que as fotografias vão ser separadas e vividas individualmente num novo corpo".