As minorias religiosas sob o totalitarismo do Estado Islâmico
Uma dessas semelhanças é a pretensão de criar um homem e uma sociedade perfeita, por diferentes vias. Os totalitarismos seculares são “futuristas”. São subprodutos do Iluminismo. O totalitarismo Islamista-jihadista é “passadista”. É um subproduto do Islão. A utopia da sociedade perfeita está no regresso aos primórdios da era islâmica. Não está na transformação segundo a fé iluminista inabalável no progresso e no futuro. Pretende voltar a um passado idealizado, o Islão medieval dos primeiros califas sucessores do Profeta Maomé. Como nos totalitarismos seculares, impõe a sua visão do mundo sem espaço para pluralismos ou dissidências. Usa a intimidação verbal e física e a violência para sujeição, ou eliminação, dos seus opositores. Todos os não muçulmanos – incluindo os muçulmanos que não se revêm na sua interpretação do Islão –, são potenciais vítimas do fanatismo Islamista-jihadista. (Ver “O Islamismo-jihadista como ideologia política totalitária” Público, 27/09/2014). Nos últimos tempos, uma minoria visada de forma brutal são os cristãos do Médio Oriente, a forma mais antiga e próxima dos relatos bíblicos de Cristianismo. A par destes, outras minorias como os curdos e yazidis sofrem atrocidades. O caso dos cristãos é clarificador sobre o tratamento dado às minorias religiosas em geral. No seu zelo purista, o ISIS está a usar as regras medievais do Tratado ou Pacto (dhimma em árabe) de Umar. Esse Tratado – analisado mais à frente –, terá sido feito pelo califa Umar b. al-Hattab, ou Umar I, no ano de 78 (687 da era cristã) com os cristãos da Síria. O ISIS vê-se hoje no lugar dos conquistadores árabes da Síria e outros territórios do Levante aos Impérios Bizantino e Persa Sassânida no século VII. Pretende submeter os cristãos e restantes "Povos do Livro" à dhimmitude (neologismo cunhado a partir de dhimma), sujeitando-os às disposições da sharia abandonadas durante as Tanzimat, as reformas modernizadoras do Império Otomano efetuadas no século XIX.
2. Ao longo da semana anterior os media ocidentais divulgaram o sequestro, feito por milícias do ISIS no nordeste da Síria, de mais de duas centenas de cristãos assírios. Anteriormente, foram brutalmente sequestrados e decapitados na Líbia vinte e um cristãos coptas egípcios. Uma outra informação da BBC, datada de há cerca um ano atrás (27/02/2014), descrevia-nos o tratamento dado aos cristãos capturados em Raqqa (Syria crisis: ISIS imposes rules on Christians in Raqqa/Crise na Síria: ISIS impõe regras aos cristãos de Raqqa). Vale a pena ler um excerto que aqui transcrevo. “Um grupo jihadista na Síria exigiu que os cristãos no norte da cidade de Raqqa pagassem um imposto em ouro e aceitassem limitações à sua fé, ou teriam de encarar a morte [...] A diretiva do ISIS, citando o conceito islâmico de dhimma, exige que os cristãos na cidade paguem um imposto de cerca de metade de uma onça (14 g) de ouro puro, em troca da sua segurança. A diretiva diz que os cristãos não devem fazer obras nas suas igrejas, exibir cruzes ou outros símbolos religiosos fora destas, tocar os sinos da igreja, ou rezar em público. Os cristãos não devem trazer armas e devem seguir outras regras impostas [...]. Segundo o comunicado, o grupo reuniu-se com representantes cristãos e ofereceu-lhes três opções – poderiam converter-se ao Islão, aceitar as condições [anteriores], ou rejeitá-las correndo risco de serem mortos. ‘Se as rejeitam, estão sujeitos a ser alvos legítimos‘ [...] Um grupo de vinte líderes cristãos escolheu aceitar o novo conjunto de regras, disse o ISIS.“ Para os Islamista-jihadistas, trata-se, apenas, de voltar a aplicar “escrupulosamente” a sharia com base no já referido Tratado ou Pacto de Umar. Aos seus olhos, tem a legitimidade inatacável de ter sido celebrado pelos primeiros califas com os cristãos da Síria, aquando da sua rendição aos exércitos muçulmanos, no século VII. Vêm-no como a forma intemporal de lidar com cristãos, judeus e zoroastrianos (dhimmi)
3. O jurista libanês Antoine Fattal no livro Le statut legal des non-musulmans em pays d’Islam/O Estatuto Legal dos Não-Muçulmanos nos Países Islâmicos (2.ª ed., Beyrouth, Dar El-Machreq Éditeurs, 1995), explica esse estatuto. Antoine Fattal faz notar a existência de várias versões do Tratado de Umar, bem como a existência de dúvidas quanto à sua autenticidade. A título de exemplo, reproduzo aqui uma das versões que descreve no seu livro (pp. 64-65). Nesta versão, o texto é atribuído a uma negociação de Umar e Abu Ubaida com Constantino, patriarca cristão sírio de Antioquia. Atente-se neste excerto: “(i) os ricos entre os habitantes de d’as-Sam (possível nome de Damasco) pagarão uma jizya de 48 dirhems; aqueles que vivem com desafogo uma jizya de 24 dirhems; os pobres, uma jizya de 12 dirhems; (ii) os habitantes de d’as-Sam não criarão igrejas novas; (iii) não usarão a cruz nos bairros muçulmanos; (iv) não baterão os naqus (sinos) fora das suas igrejas; (v) partilharão as suas casas com os muçulmanos; (vi) cederão aos muçulmanos, para que aí construam mesquitas, os terrenos dirigidos para o Sul, contíguos às suas igrejas; (vii) não passearão os porcos nos bairros muçulmanos; (viii) albergarão os muçulmanos de passagem, três dias e três noites; (ix) guiarão os viajantes de cidade em cidade e irão colocá-los na boa direção; (x) fornecerão ajuda aos muçulmanos e não os trairão; (xi) não concluirão alianças com os inimigos dos muçulmanos; (xii) aqueles que violarem este acordo são passíveis da pena de morte e a sua mulher e filhos podem ser reduzidos à escravidão.” A semelhança com as regras que o ISIS pretende impor atualmente aos cristãos da Síria é muito óbvia. No contexto medieval, estas foram um avanço em relação às leis de guerra da Antiguidade: morte ou escravidão dos capturados. Permitiram, regra geral, ser mais tolerante com os vencidos do que no Ocidente cristão, ou noutras partes do mundo. Isto, numa época em que o moderno conceito de tolerância era inexistente. Mas pretender aplicá-lo no século XXI, negando a evolução civilizacional da humanidade e os Direitos Humanos universais, não é regressar a uma sociedade em harmonia com a vontade divina. É criar um totalitarismo disfarçado de Islão medieval.
Investigador. Autor dos livros Islamismo e Multiculturalismo. As Ideologias após o Fim da História (Almedina, 2006)