Cultura e património cultural: ideias para o futuro
É essencial a celebração de alguma espécie de pacto de regime entre todas as forças parlamentares, no sentido de ser atingido o tão desejado patamar de 1% do PIB para a Cultura.
Esgrimem-se números de visitantes, mas omitem-se as receitas que demonstrariam o descalabro da capitulação do interesse público, afundado em ambiente de “sempre em festa”, que aproveita sobretudo a privados. Afirma-se o apego à cidadania, mas reduz-se dos 14 para os 12 anos a entrada gratuita em museus — isto quando em quase toda a Europa tal gratuitidade vai até aos 18 anos (ou até aos 25 anos no caso dos estudantes), idade para a qual, até entre nós, se alargou recentemente a isenção de taxas moderadoras na Saúde. No fundo, no fundo, deixou-se de acreditar na Cultura enquanto força de transformação social e começam a erguer-se os espectros dos que pretendem de novo separar “cultura viva” ou performativa, de “cultura morta” ou patrimonial. O quadro político previsivelmente emergente do ciclo eleitoral que ora começa dá o mote aos mesmos do ciclo anterior, que aliás facilmente se irmanarão com os actuais, bastando para isso encontrar um qualquer “pote de mel” onde todos possam meter a mão. E não admira que assim seja porque se há área da governação facilitadora do exercício do bloco central, ela é a da Cultura: basta recordar como o último secretário de Estado do Governo Sócrates veio depois a merecer a confiança do Governo Coelho, que dele fez director-geral.
Poderá até ser que à Cultura seja novamente atribuído estatuto ministerial. Mas não passará de flor na lapela se for ainda mais residual do que já hoje. E tal poderá acontecer porque para o bloco central dos interesses o futuro estará na Economia e no Turismo, local onde se geram receitas capazes de financiar clientelas e promover projectos como o novo Museus dos Coches. Ora, sendo fora de dúvidas a relevância dos museus e monumentos nacionais para o Turismo, do qual é mais do que justo possam receber receitas, a verdade é que o património cultural do País não apenas está longe de se resumir aos bens de interesse turístico, como deve ser entendido sobretudo como uma memória de soberania, posta ao serviço da emancipação cidadã — asserção que pode até ser banal, mas é talvez chegada a altura de reafirmar de forma clara.
Defendemos o paradigma da Cultura para o património cultural português, em todas as suas dimensões: arte e arquitectura, arqueologia, museus, tradições populares, etc. Concordamos com a reconstituição de um Ministério da Cultura, desejável em si mesmo, pelo simbolismo e acréscimo de capacidade funcional. Mas entendemos ser mais essencial a celebração de alguma espécie de pacto de regime entre todas as forças parlamentares, no sentido de em horizonte quantificado e credível (duas a três legislaturas, talvez) ser atingido o tão desejado patamar de 1% do PIB para a Cultura, directamente e sem os sofismas de contar com verbas de outros ministérios.
Lutamos depois para que se regresse ao bom espírito republicano e do pós-1974 em matéria de participação cidadã, e nomeadamente associativa, na definição das políticas do património cultural. O actual Conselho Nacional de Cultura, que em plenário não passa de fórum de teatralidade político-mundana e em secções técnicas é amplamente dominado por “gente da casa” (membros por inerência ou nomeados pela tutela), deve ser totalmente refundado em bases democráticas.
Centrados embora na Cultura, reforçada no seu orçamento, como acima se disse, sustentamos que no plano da governação corrente devem ser tomadas medidas de aprofundamento da cooperação interdepartamental, através da celebração de programas de financiamento plurianuais, nomeadamente com a Economia/Turismo para o desenvolvimento da rede de museus e monumentos nacionais (de tutela directa governamental), definindo porventura parâmetros indexados ao desempenho nos domínios da oferta e da visitação turística; com a Educação, prosseguindo objectivos educativos, seja de visita por grupos escolares, seja de formação de públicos nacionais; com o Território e o Ambiente, no caso da monitorização do património cultural não classificado; e com as CCDRs e/ou associações de municípios e/ou municípios individualmente, para apoio ou mesmo transferência de competências de gestão de museus e monumentos não nacionais.
Finalmente, no que respeita à orgânica da Cultura propriamente dita, cremos que se deve ser mais radical, até por ser aqui onde mais rapidamente se poderá fazer com que alguma coisa mude, para que tudo fique na mesma. Impõe-se, por isso, proceder à extinção da DGPC. Em seu lugar poderia criar-se um Instituto dos Museus e Monumentos Nacionais, dotado de autonomia financeira e com ampla descentralização administrativa. Aos museus nacionais deveria voltar-se a conferir capacidades que já tiveram, acrescidas de outras que tornem todo o edifício mais racional, com a vantagem de economias de escala acrescidas: maior latitude de planeamento estratégico e gestão, dentro de planos de actividades plurianuais, habilitação para o estabelecimento de parcerias e protocolos (mormente no caso de projectos europeus e dos fundos assim originados), capacidade de arrecadação e gestão de receitas próprias, dentro de limites a definir, orçamento próprio, contratação de pessoal dentro de condições a definir, etc. As funções de reflexão estratégica e definição de normativos, monitorização e fiscalização em relação a todo o restante património cultural manter-se-iam neste instituto, em direcções de serviço centrais. Poderiam também, parcialmente e em alternativa, ser partilhadas com a área do Ambiente/Território e/ou com as CCDRs, dando início a um verdadeiro processo de regionalização.
Importa ainda, e muito mais, extinguir as DRCs, que de regional pouco ou nada têm, substituindo-as por “núcleos” ou “brigadas” de intervenção rápida, fazendo uso dos meios logísticos existentes na rede de museus e monumentos nacionais, com reforço operacional destes, instituindo-os em “centros de recursos” (inventário, conservação e restauro, etc.) ao serviço da sua respectiva região/especialidade.
Se tudo isto for feito, acreditamos que a Cultura, de novo organizada em Ministério, poderá retomar o lugar que lhe compete numa verdadeira política de desenvolvimento cidadão. Caso contrário, não será difícil antever o seu progressivo definhamento, acantonada em mero veiculo distribuidor de pequenos subsídios, no caso das artes performativas, e esvaziada das funções da salvaguarda e promoção da memória patrimonial, que veremos descaracterizar-se, ao serviço do mercado turístico. A consigna será então simplesmente uma: "Follow the money".
Arqueólogo