Era preciso lembrar do vértice do Corcovado que dava para ver da cama, lembrar da lua ao contrário e do nome da padaria, lembrar do postal com a cara do Octavio Paz colado na parede de meu quarto, Paz menino, lembrar aquela canção do Arto que abria a cortina dos meus olhos e que eu sempre dançava de tarde, era preciso lembrar de uma cidade povoada do profundíssimo anonimato e isso é que era maravilhoso, ninguém sabia meu nome e até eu estava só aprendendo meu nome. No boteco de domingo eles iam começando a saber, domingo era dia de samba e no final da batucada sempre tocava o Trem das Onze. Eu ia no boteco de pijama aos domingos.
Foi preciso lembrar de tudo isso agora, anos mais tarde fui ler aquele texto do Fitzgerald que se chamava Minha Cidade Perdida e pensei que já estava tudo escrito, um dia a gente tá em casa e de repente não, li o texto numa padaria em Ipanema e acho que chorei, era dois mil e treze, Ipanema não parecia tão de plástico. Voltei à cidade uma porção de vezes, sempre volto, cheguei a me apaixonar na cidade muito depois de me apaixonar pela cidade, nesse caso acho que foi tudo na ordem certa, as coisas às vezes começam com Nelson Cavaquinho e vão dar em Raça Negra, as coisas invariavelmente estão suspensas nas cordas soltas de um violão mas elas sempre estão na ordem certa porque, olha, o primeiro amor a gente não esquece e meu primeiro amor foi a cidade.
De repente era preciso falar das viagens entre o mar e o centro, a verdade é que eu passava muito mais tempo no centro da cidade que na praia, a Av. Rio Branco é que era o grande barato, minha Nova Iorque tropical, os trópicos no verão são tão violentos, quando eu era criança não suava nem chorava, mas eis aqui tua cidade, eis um pedaço de Brasil, tem uma selva ao fundo de todas as coisas repare, tem uma selva no fundo de todo o homem. A gente não tinha dinheiro nenhum mas a gente ia ao cinema para fugir do calor e foi assim que o verão melhorou muito minha cinematografia privada.
Era preciso lembrar da Mangueira e de um sol de mil graus em nossas costas na Mangueira, a cara do policial, o estrondo, o filho do grande sambista pregando um quadro na parede, a briga, o feijão com arroz e veja bem está tudo bem, o sol confunde a gente e um passaporte não vale absolutamente nada- o que vale é a destreza e a honestidade, o resto é poeira nos olhos.
De repente era preciso rodar pela trilha da memória da cidade anónima, aquela sem rosto nem nome, antes da invasão tinha só uma lagoa toda limpa e um mar cheio de índios, alguém tocava um instrumento, você ainda não tinha nascido e nem tinha reflexo no chão, era um chão virgem de saudade e de tanques de guerra e de golpes de cerveja ou de ciúme, aquilo ainda nem era cidade, você ainda não tinha rasgado um joelho, os gémeos não tinham te alugado um quarto de 5m², ninguém tinha plantado uma estátua na cabeça da montanha. Um cartaz de cinema não fazia lembrar Butch Cassidy nem os olhos de uma menina, o leão feroz estava dormindo e não queria saber de copos de açaí nem de sementes de acerola. Um coco era um coco, sem bênção nem benefício. Ninguém queria saber de notícia de jornal, a intimidade nunca era fintada com o floreado das historinhas, Ipanema nem tinha ônibus, o câmbio se fazia pela pedra, pelo arco, pela lira.
O mundo era todo diferente e a teoria da Seta do Tempo ainda não tinha sido descoberta, agora os cientistas dizem que existem dois futuros, um só passado mas dois futuros paralelos, de um dá para ver o outro, um mais evoluído que o outro, e veja bem, claro, estamos morando no futuro retrasado. Segundo a ciência, de uma galáxia paralela dá para ver o nosso tempo- e o nosso tempo é o tempo antigo. Não sei se acredito em teorias demasiado científicas, mas da minha janela vê-se o Corcovado, Octavio Paz tem quinze anos, reconheço poucos nomes, a lua parece toda invertida. Está um calor desgraçado.