Dos Açores ao Mediterrâneo, sob a sombra de Quixote
Mar Aberto junta Pedro Lucas, do Experimentar Na M'Incomoda, à voz de Carlos Medeiros. Concerto de apresentação esta quinta-feira no Musicbox. Recordamos a entrevista ao Ípsilon.
A viagem que é este álbum precioso chamado Mar Aberto, criaram-na Pedro Lucas, que conhecemos dos magníficos discos de O Experimentar Na M’Incomoda, homónimo o primeiro (2010), 2: O Sagrado e o Profano, o segundo (2012), e Carlos Medeiros, o músico que em 1998 editou O Cantar Na M’Incomoda e que, sem o saber, deixava ali inspiração para que Lucas, uma década depois, continuasse a aventura.
Mas que viagem é afinal esta? É a que dois açorianos, o mais velho terceirense nas ilhas toda a sua vida, o segundo faialense delas saído aos 18 anos, iniciaram quando, depois de Pedro Lucas dar pela segunda vez a volta à tradição açoriana com programações electrónicas, baterias e órgãos Hammond, decidiu que o próximo passo seria gravar um disco de Medeiros. Medeiros achou que só fazia sentido um trabalho conjunto, assinado pelos dois. “Havia muita curiosidade da minha parte com o que ele fazia. Achei muito curiosa aquela mistura da electrónica com música tradicional e interessava-me explorar isso. A dois é muito mais fácil”, conta ao Ípsilon em telefonema desde os Açores.
“Estive uma semana numa casa dele em São Miguel e foi bom começar sem pressão: ‘Vou a tua casa, levo o gravador, e vemos se sai alguma coisa ou não’”, conta Pedro Lucas desde Copenhaga, onde reside há vários anos. O que saiu não é mistura de electrónica com música tradicional, nem é um disco de Carlos Medeiros produzido por Pedro Lucas. “É uma viagem interior, mas com uma pretensão geográfica de culturas aqui dos nossos lados, como as do Mediterrâneo”, diz Carlos Medeiros.
Em palco, descobriremos exactamente o que é Mar Aberto no Musicbox, em Lisboa, dia 19 de Março, com Jibóia + Filho da Mãe na primeira parte do concerto (22h30, 10€). Uma semana depois, os Açores: Teatro Faialense, na Horta, dia 27, e Festival Tremor, em Ponta Delgada, a 28.
Medeiros/Lucas é a assinatura. A música, são 11 canções guiadas pela voz cheia de Carlos Medeiros, de uma força primeva que se impõe sem se exibir (é pura a sua imponência), e tornadas algo maior pelo acompanhamento da guitarra eléctrica ora dedilhada em ondulação, ora chispando estridências, pelas percussões discretas mas definitivamente presentes (timbalões, pandeiretas), pela luxúria do vibrafone, pelos sintetizadores crepusculares e pelas ocasionais camadas sonoras electrónicas. As letras são de Armando Côrte-Rodrigues, poeta açoriano publicado na Orpheu e de António Sousa, nascido no Porto mas com ligações paternas à Ilha Terceira (e editado por Natália Correia, explica Carlos Medeiros). São também da tradição oral açoriana e de Cervantes. É este último, o gigante da literatura espanhola, que serve de pêndulo a Mar Aberto: “É a base, o centro de toda esta marinhagem quixotesca”, explicará Carlos Medeiros. Ao ler o D. Quixote quando do 400.º aniversário da obra, em 2005, Medeiros começou a alimentar a ideia de trabalhar essa leitura. Quando Pedro Lucas, quase dez anos depois, o aborda para trabalharem em conjunto, o Quixote apresentou-se-lhe como ponto de partida. “A partir dessa ideia de um Quixote marujo”, explica Pedro Lucas, “fomos à procura de outros textos que tivessem ligação ao mar, à marinhagem, à viagem”. Da terra da Mancha para o oceano. Mar Aberto, verdadeiramente.
Algo do mistério
Este é um disco especial. Começámos a percebê-lo quando ouvimos as canções a ganharem força e respiração em discretos concertos em Lisboa, ainda não nascera o disco que seria depois gravado, entre Outubro e Novembro de 2014, com a colaboração de músicos como o percussionista Ian Carlo Mendoza, Mitó Mendes, vocalista d’A Naifa, Gil Alves (flauta), acompanhante do músico açoriano Zeca Medeiros, Pedro Gaspar, em baixo e mandolim, ou Augusto Macedo (teclas, baixo), da banda de Selma Uamusse.
Ouvido o disco, imersos no som e nas palavras, mais fácil será aperceber nestes acordes menores e na bruma nocturna que parece envolver as canções algo do mistério que associamos aos Açores e ao Atlântico que os envolve. Não estaremos errados ao fazê-lo: “A ‘açoraniedade’, se é que posso utilizar essa palavra, presumo que seja um bocadinho condição de estilo. É aquilo que somos”, afirma Lucas. “O Carlos viveu toda a vida nos Açores, eu vivi 18 anos e, na música, aquilo que fiz mais a sério também estava ligado a esse imaginário."
Não estaremos errados? Carlos Medeiros: “Os Açores? Pode ser a Madeira, podem ser Cabo Verde ou as Canárias. Somos todos tão parecidos. Não sei o que é isso da alma açoriana”, confessa. E depois acrescenta, pontuando a frase com uma gargalhada: “Só para encontrar a alma é uma dificuldade. Alma açoriana, então, é ainda pior." Lucas, assumindo que a aleatoriedade do processo os conduziu a determinada rota (“Não decidimos que íamos usar autores açorianos, mas acabámos por nos concentrar nas prateleiras de poesia açoriana”), confessará que a sua ideia era cortar com “a ideia dos Açores e da música tradicional”: “Gosto de ter começado com um projecto como O Experimentar, porque foi uma espécie de exercício, mas estar a vasculhar novamente nas raízes, pelo menos intencionalmente, seria um bocado de mais” – tanto que avisou a editora que a palavra “Açores” e a expressão “música tradicional” estavam absolutamente interditas do material promocional. “Queria tentar ir para outro sítio." Noutro sítio acostou.
Quando abordamos o seu trabalho de recolhas musicais, base para esse belíssimo álbum pouco divulgado que é O Cantar Na M’Incomoda, Carlos Medeiros soltará uma gargalhada. “Eu sempre fui um aldrabão”, dirá com piada. “Não fiz grandes recolhas no sentido científico. Ouvia e punha aquilo ao meu serviço. Não servia a música tradicional, punha a música tradicional ao meu serviço."
Pedro Lucas, por sua vez, explica que que procurava trabalhar o formato canção, fazendo dela um espaço para várias confluências. Em Navio procurava “ouvir e sentir o mar” como em Santiana, um dos temas de O Cantar Na M’Incomoda. Na Canção do mar aberto pressente algo do Mar d’Outubro dos Sétima Legião. E ao pegar na guitarra teve como referências Marc Ribot, influência de sempre, “uma certa portugalidade dos Dead Combo”, ou, em temas como Marinheiro, o som dos marroquinos Nass El Ghiwane, que transformaram em som urbano a música tradicional magrebina. “Queria fazer uma coisa anti-celta, ter a Ibéria do sul em vez da Ibéria do norte”, explica. “Não queríamos os grandes tambores e os graves celtas, mas qualquer coisa mais leve. Como as catedrais góticas por oposição às românicas, que são pesadas, fortes, achatadas. As góticas são mais leves e apontam ao céu. Era isso que queríamos. Ser mais leves, mais etéreos, românticos."
São os Açores por inevitabilidade, porque são palavras açorianas, cantadas e tocadas por açorianos aquilo que ouvimos – até as de Batalha do Lepanto, recolhidas ao cancioneiro popular da Terceira. Mas não são verdadeiramente os Açores que aqui encontramos. Aqui, a viagem a que se entregaram dois Quixotes que se aventuraram mar adentro. “O Dom Quixote poderia chegar à Dulcineia mais rápido, mas quer a viagem toda, quer combater os gigantes todos antes de chegar até ela. O Captain Ahab vagueia pelos mares procurando o Moby Dick, esperando que ele o leve. O caminho é essa busca consentida."
“Quando eu nasci neste mundo/ tive a sorte desgraçada/ de ir para aquele navio/ sem saber pouco nem nada." É o Fado do Marujo, a segunda canção de Mar Aberto. Desgraçadamente bem-aventurados partimos. Regressaremos a saber mais do que um pouco. Tivemos os melhores timoneiros. Temos um grande, grande disco. Românticos seremos. Mar aberto.