A noite em que Hollywood trouxe os seus amigos negros
A cerimónia foi uma celebração de uma Hollywood multirracial que não achou nenhum negro digno de nomeação.
A ausência de qualquer actor ou actriz negros entre os 20 nomeados nas categorias de interpretação e a alegada falta de reconhecimento da Academia para com Selma, drama histórico realizado pela afro-americana Ava duVernay sobre um marco na luta dos direitos civis americanos, desviou as atenções da competição propriamente dita para o que muitos viram como um reflexo do falso liberalismo de Hollywood, sempre pronta a defender causas progressistas mas perpetuadora do statu quo quando se trata do seu próprio quintal. Ou, como outros disseram de forma menos benevolente: as nomeações deste ano puseram em evidência o racismo sistemático da indústria de cinema americano.
Que a edição do ano passado tenha consagrado 12 Anos Escravo de Steve McQueen, o primeiro filme realizado por um negro a ganhar o prémio principal em 86 anos de Óscares, só serviu para acentuar o contraste. A diferença que faz um ano: em 2014 falava-se de "history-making" a propósito da integração dos Óscares, este ano falou-se de hipocrisia.
Os recentes acontecimentos em Ferguson e Staten Island, onde jovens negros desarmados foram mortos por polícias brancos, também enterraram definitivamente as ilusões da era Obama sobre uma América pós-racial e fizeram regressar um debate sobre divisões raciais mais combativo e menos complacente.
Esse clima de desconforto fez com que a cerimónia deste ano tivesse um cunho surpreendentemente político, mais do que em muito tempo: o ponto alto das suas quase quatro horas de duração foi – e isto é consensual – a apresentação de Glory, hino sobre a emancipação dos negros na América que menciona Ferguson e que ganhou o Óscar de melhor canção (o único atribuído a Selma), logo seguido pelo discurso do seu co-intérprete, John Legend, que assinalou aquilo que o próprio filme é incapaz de fazer: que há uma relação, uma história não encerrada, entre os acontecimentos retratados em Selma e o presente.
“Selma é agora. A Lei dos Direitos de Voto pela qual [Martin Luther King e outros activistas negros] lutaram há 50 anos está a ser posta em causa neste país hoje”, disse o músico, antes de afirmar que existem actualmente mais negros nas prisões americanas do que escravos em 1850.
Mas o que tornou a cerimónia verdadeiramente gratificante para aqueles que há muito procuram uma boa razão para dedicar atenção aos Óscares – e que não a encontravam nos filmes, nas piadas, nos números musicais, nos discursos – foi ver os esforços de Hollywood para tentar corrigir ou distrair o público da falta de diversidade desta edição, tornando a questão ainda mais notória.
À semelhança de uma pessoa branca que proclama “Mas eu tenho amigos negros!” quando é acusada de racismo, os organizadores da cerimónia quiseram redobrar a visibilidade de negros na sala, trazendo-os para as primeiras filas, focando frequentemente a câmara neles, proporcionando uma parada de apresentadores negros em palco (13 no total, incluindo, muitas vezes, parelhas de actores negros com actores brancos). Como acontece frequentemente com brancos bem-intencionados quando são confrontados com as suas atitudes raciais, a desculpabilização teve os seus momentos inusitados e condescendentes (ainda não passara um minuto da abertura quando o apresentador Neil Patrick Harris brincou que os Óscares “honram os melhores e mais brancos”, mas foi um gesto de auto-irrisão destinado a deixar o caminho livre para piadas raciais perigosamente arriscadas ao longo da cerimónia).
De todas as contradições que os Óscares encerram, essa será, talvez, aquela pela qual nos vamos lembrar desta edição daqui a muito tempo: uma celebração exagerada de uma Hollywood multirracial que não achou o trabalho de nenhum colega negro digno de nomeação.