O tesouro do delfim
As infracções indiciadas por elementos que constam do processo judicial dos submarinos não prescreveram.
A interrogação é justificada – afinal não foi por suspeitas de financiamento partidário ilegal que foi aberta a investigação judicial ao contrato dos submarinos? Além do milhão de euros que entrou nas contas do CDS/PP no BES, subitamente, na última semana de 2004, por afã doador de personagens fictícias como um tal "Jacinto Leite Capelo Rego", havia escutas telefónicas no processo Portucale (o dos sobreiros do GES) com referências a fundos e compromissos financeiros secretos.
Tudo consta do processo que tive oportunidade de consultar, como assistente. E sucede haver elementos sobre decisões que em Abril de 2005, afastado do Governo, o ex-ministro da Defesa tomou, com o seu tesoureiro Abel Pinheiro, sobre a passagem de contas à nova direcção partidária, relativamente a financiamentos feitos ao CDS/PP.
Com parte do dinheiro recolhido (cuja origem não é conhecida) terá sido criado um fundo secreto. Para quê? Ad usum delphini ("Para uso do delfim").
A expressão é famosa porque era usada para designar as edições dos clássicos latinos, destinadas ao uso do delfim, filho de Luís XIV. Ainda hoje é usada para referir qualquer edição expurgada e simplificada. Mas não era, por certo, nesta acepção que a usavam os dois dirigentes partidários. O que importava era que o dinheiro obtido não fosse parar a mãos erradas, no caso as de José Ribeiro e Castro, sucessor de Paulo Portas na direcção do CDS/PP.
Assumindo que delfim só há um, para que serviria o dinheiro?
Não se sabe. Nem quanto era, nem de onde veio, nem onde estava guardado, nem para que serviria. Nem para onde foi. Sabe-se apenas que se destinava a uso exclusivo de Paulo Portas.
Como é possível que esta revelação não suscite indignação pública? Suscitará, de certeza, se quem de Direito esclarecer o que ocorreu efectivamente.
A lei impõe que o pagamento de qualquer despesa dos partidos políticos seja obrigatoriamente efectuado por meio de cheque ou por outro meio bancário que permita a identificação do montante e a entidade destinatária do pagamento, devendo os partidos proceder às necessárias reconciliações bancárias.
Um fundo secreto, como o referido, permitiria fazer pagamentos, à margem da lei, a bel-prazer do chefe partidário em exercício. Distinta e mais grave seria, todavia, a apropriação desse dinheiro pelo ex-líder do partido, para uso próprio ou por terceiros da sua confiança.
Uma coisa é certa: face à legislação sobre financiamento partidário, a criação de um saco azul como o aludido constitui infracção grave.
Não apenas por ter natureza clandestina, violando regras de transparência que a lei consagra, mas porque seria apropriação de dinheiro pertencente ao partido por membros da sua direcção cessante.
A reacção enervada de Paulo Portas e a tentativa de fugir ao debate político sobre violações da lei, disparando julgamentos de carácter e fazendo de vítima de perseguição, não vão chegar para encerrar o assunto e virar a página.
As infracções indiciadas por elementos que constam do processo judicial dos submarinos não prescreveram. Os protagonistas e as suas vítimas estão vivos e podem depor perante a Justiça, que decidirá, nos termos da Constituição e da lei.
O tesouro do delfim não lhe pertence. Se é o que parece, é nosso e deve ser devolvido.
Eurodeputada (PS)