O horizonte torna mais visíveis os verticais que somos...

O cineasta Bruno Dumont reforça a sua metafísica. Através de uma mini-série feita para o pequeno ecrã da TV, divertimento viciante, obsessivo. Aqui o Mal nunca dorme. E ninguém dormirá se vir O Pequeno Quinquin, porque é o grande filme nos nossos grandes ecrãs.

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Bruno Dumont e os seus actores
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O Mal não pode ser fintado. É disso que falam os olhos piscos do Comandante Van der Weyden (interpretado pelo jardineiro Bernard Pruvost)
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Os olhos bem abertos, ardentes de expectativa, de Emmanuel Schotté/Pharaon De Winter, o polícia de L’Humanité, filme de Dumont de 1999

Esse palmarés foi o maior filme que David Cronenberg, presidente do júri, “realizou” depois de Crash (1996): nunca depois disso foi assim escandaloso. A direcção do festival não gostou da concentração de prémios; houve imprensa que apupou as distinções às interpretações de quem não era actor e parecia estar a ser exibido em feira – o homem e a mulher do filme de Dumont, sobretudo.

Foi mesmo long live the new flesh: proletários nas festividades – Rosetta/Émilie Dequenne não pedia licença, era personagem que queria simplesmente existir – e uma sensação de vertigem para o espectador, colocado em território de fronteira: o realizador de L’Humanité, Dumont, estaria a gozar com os corpos que filmava, por exemplo com os olhos esbugalhados de Emmanuel Schotté, polícia que investiga um crime, que tem no olhar a luz e o tempo da pintura, os pecados do mundo nos ombros e o corpo, já não podendo mais, a levitar?

Foi memorável e (cada vez mais) irrepetível. Os Dardenne nunca se recompuseram da sua Rosetta. Embora tornando-se estrelas de Cannes, habitués, premiados e tudo, andam há anos a correr atrás do pescoço das personagens. E Dumont, com carreira de menor notoriedade mediática, ficou a exercitar-se, aluno aplicado, com a severidade do cinema de Robert Bresson. Mas agora, e se calhar não é coincidência que o “agora” aconteça depois de ter descoberto o “trágico-cómico” de Jean Epstein (1897-1953) – exclamou, aliás: antes de Bresson houve “o maior cineasta francês”, Epstein –, mas agora, dizia-se, há O Pequeno Quinquin.

Começou por ser uma encomenda do canal Arte para uma mini-série de quatro episódios, 3h 20 minutos, que fora de França vai ser exibida em sala, versão Cinemascope. A revista Cahiers du Cinéma considerou-a, à mini-série, o melhor filme do ano. Esse é um primeiro sobressalto – televisão ou cinema? É a desfaçatez de O Pequeno Quinquin: Dumont aproveita-se da oportunidade para, jogando com as expectativas, com as possibilidades de aleatório, de um divertimento viciante, obsessivo, que vai reformulando os seus centros de atenção (fantasma Twin Peaks), ser mais ele mesmo e não ser apenas mais do mesmo (já agora, há interesse da Arte em mais episódios).

O segundo sobressalto é o humor. Dumont tem graça? Houve quem achasse divertido, houve quem achasse cínico. Mas uns e outros viram aqui uma primeira vez.

Não é certo que o burlesco esteja ausente da sisudez de L’Humanité, por exemplo. Mas há aqui uma consciência cómica que agudiza o atordoamento cósmico. Mais: as personagens – interpretadas por não-profissionais – revelam-se especialistas no território de Dumont tanto ou mais do que um espectador iniciado. Lembram a cada instante que estamos no “coração do Mal” – quando uma série de crimes são descobertos, pedaços humanos no interior de vacas loucas, a dupla de investigadores, que como casal burlesco não brinca em serviço, extasia-se com a fusão, com a quimera (“La bête humaine... c’est du Zola!”) – um gosto pela literalidade, para além do mais, de fazer inveja a... Cronenberg.

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O Pequeno Quinquin

O que aconteceu aqui? A capa de irrisão é gesto arriscado e inesperado, mas com ele o cineasta renova a sua metafísica, desbotada há vários filmes. Como um jogo (não propriamente remake) com os seus dois títulos iniciais, La Vie de Jésus (1997) e L’Humanité (1999), até aqui os seus mais relevantes.

As paisagens silenciosas do Norte de França (formado em Filosofia, Dumont nasceu em Bailleul, entre Lille e Dunkerque) continuam a “falar” das personagens – e nunca, a não ser numa cena, elas são vistas em interiores, como se estivessem condenadas a ser emanação de um habitat. As paisagens falam, com o seu silêncio, e com a sua dessaturação cromática, de uma humanidade trágica que não consegue, mesmo com eventuais golpes da Graça – mesmo escudando-se nos gestos das missas (sequência alucinante, essa, tudo em perfeito e irreversível desacordo) – contornar o Mal.

O que acontece aqui: corpos aos bocados dentro de vacas, gente comida pelos porcos, crimes que fazem rodopiar uma dupla de investigadores numa incessante coreografia que não os vai levar à descoberta do criminoso (até porque a série tem de continuar no futuro) mas é a evidência de uma velha sabedoria que está inscrita nos corpos: o Mal não pode ser fintado. É disso que falam os olhos piscos do Comandante Van der Weyden (interpretado pelo jardineiro Bernard Pruvost), anos depois dos olhos bem abertos, ardentes de expectativa, de Emmanuel Schotté/Pharaon De Winter, o polícia de L’Humanité.

Há um grupo de miúdos que se aproximam das vacas fundidas com seres humanos, tal como os miúdos eram atraídos pela morte em Stand by Me (Rob Reiner, 1986). Entre eles, Quinquin (Alane Delhaye), rosto com as assimetrias do boxeur que é já um filme ganho. Manipulador, ditador, racista (a fobia anti-árabe em França está documentada pelo cinema de Dumont há bastante tempo), amoroso. E Dumont ama estas criaturas cheias de picos até ao fim. Nunca as adocicou, nunca fez delas heroínas da acção moral, por exemplo, como já fizeram os Dardenne. Encontra para elas, e para o espectador, abraços e beijos de pausa. Mas o Mal não dorme.

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O Pequeno Quinquin

Não páro de pensar nos olhos esbugalhados de Emmanuel Schotté/Pharaon De Winter, o polícia de L’Humanité (1999), e nos tiques nos olhos de Bernard Pruvost/Commandante Van der Weyden – olhar mais hesitante –, o polícia de O Pequeno Quinquin. São personagens na vizinhança do Mal com a investigação de um crime. Talvez haja um desespero em Van der Weyden, não sei se ele pode ainda acreditar; Pharaon De Winter, pelo contrário, acredita: está do lado do milagre, aliás levita em L’Humanité. Tudo isso nos olhos.

Sim, parece-me que as personagem pertencem a um mesmo núcleo que percorre os dois filmes. Elas têm uma relação de parentesco entre si e cada uma delas enfrenta evoluções e melhoramentos: ou seja, Bernard Pruvost e Emmanuel Shotté são dois polícias confrontados com o Mal, e o trágico, num, e o burlesco, noutro, andam de mãos dadas, parece-me que sim, que se equivalem.

Os olhos desses dois homens foram responsáveis pelo seu casting nos filmes?

Sim, os dois são esbugalhados e incrivelmente luminosos.

Houve quem falasse de O Pequeno Quinquin como a sua estreia no humor. Mas o burlesco já estava na vizinhança de L’Humanité. O Pequeno Quinquin é mais negro do que La Vie de Jésus ou L’Humanité. Esses dois primeiros filmes foram material de trabalho? - como um jogo, uma nova forma de, com a aparência de ligeireza, mergulhar no “coração do Mal”, como as personagens estão sempre a dizer...

Tem toda a razão: os meus filmes não fazem outra coisa a não ser aprofundar.

A propósito dessas frases dos polícias, na fronteira da irrisão: é ironia face ao “território Dumont” - por isso: é auto-ironia - mas, no mesmo movimento, reforçam-se os contornos desse território.

Isso acontece porque a ironia evidencia-se de forma mais distinta – o que imediatamente sublinha os contornos do conjunto.

La Vie de Jésus (1997), L’Humanité (1999), O Pequeno Quinquin (2014): a França imutável. O retrato de Jacques Chirac omnipresente em L’Humanité, o racismo, a fobia anti-árabe em La vie de Jésus e O Pequeno Quinquin.

É um mal francês, inscrito na história do país e que não é abanado pela vacuidade política. É o problema do outro, que tem manifestações próprias em cada país...

Mas não filma um “tema”: está próximo das personagens, admira a sua humanidade monstruosa, a nossa, afinal, e é isso que faz medo...

Mas não se esqueça da Graça, da Graça!

E a ternura: a forma como Quinquin e a sua namorada se abraçam, beijam... para personagens e espectadores são pausas, suplementos de energia para se poder continuar...

Porque o amor reina no coração do homem: o mal germina aí e aí floresce por cobardia...

Quando lhe perguntam sobre a sua preferência por não-profissionais, responde que é o mesmo que trabalhar com Juliette Binoche [com quem filmou Camille Claudel 1915, em 2013]. Mas há diferenças, ou não? Um profissional esconde os seus maneirismos para construir outros que serão das personagens enquanto, no seu caso, amplifica as características do material humano à disposição.

Os não-profissionais tocam uma partitura, como podem e segundo as suas próprias fasquias de perfeição. O actor profissional tem métier e uma gama mais vasta mas frequentemente menos profunda em termos de densidade. O importante então é saber o que é que o realizador quer e, portanto, saber quem é que deve contratar para melhor o fazer. Para interpretar um polícia eu preferi... um jardineiro [Bernard Pruvost]!

Assim procura criar desordem, desequilíbrio, no espectador. Com um actor toda a hipótese de dúvida é serenada. Pelo contrário, nos seus filmes há vertigem: “O que é que ele pensa sobre estas pessoas?”; “São personagens ou são mesmo assim na vida real?”

Sim, a vertigem é indispensável. A instabilidade aumenta a fragilidade e dessa forma a sensibilidade própria e avassaladora da personagem. É uma experiência única e extraordinária: actor por um dia, actor único. Eles não são assim na vida: interpretam personagens, numa ficção, mascarados, com diálogos e acções escritos... Faz parte da magia do cinema fazer crer que tudo isso é verdade.

Lembra-se do escândalo Cannes 1999, com o Palmarés a ser criticado pelos prémios de interpretação a quem não era actor?

Emmanuel Schotté telefonou-me na semana passada para me lembrar como fomos felizes no meio de toda a confusão causada por esse palmarés e como Cronenberg não teve medo!

Há três centros emocionais no filme: Quinquin e a amiga, o Commandante Van der Weyden e a personagem de Aurélie Terrier, que passa o filme a tentar cantar uma canção. Há uma imunidade em Quinquin e em Van der Weyden: são sobreviventes. Aurélie, pelo contrário, é uma personagem trágica. É o coração da dor do filme.

É uma tola que canta coisas estúpidas e que não gosta dos negros... Mas a câmara apoia-a porque é isso que deve fazer uma câmara, e ama-a como se ama um filho: até ao fim.

As paisagens dos seus filmes são horizontais, silenciosas. É assim que se escuta algo sobre as personagens: elas pertencem a essas paisagens. É a sua paisagem, Lille, Norte de França. O que é que há na horizontalidade?

O horizonte bem filmado torna mais visíveis os verticais que somos...

As sequências com rapazes e raparigas em bicicletas, motas: resultado de observação ou também memória autobiográfica?

Gosto de todos os veículos: como meios de transporte (passear a namorada) e como forma de o ruído mexer com as coisas e com os seres. Há qualquer coisa de místico nas bicicletas e na vibração dos motores. Uma moto no chão tem qualquer coisa de comovente.

O Pequeno Quinquin é um projecto para televisão, ARTE. Mas é em tudo um filme de Bruno Dumont. Devo perguntar-lhe, ainda assim: o formato televisivo impôs-lhe condições ou, ao contrário, libertou-o?

Gosto dos constrangimentos, são estimulantes e frequentemente contornáveis. Aceitei filmar no formato 2.0 depois de ter negociado o 1.85 exigido... ao mesmo tempo filmando uma versão scope 2.40 para cinema que é manifestamente mais bela – no dizer da própria Arte, que se rendeu.

Que pensa da “idade de ouro da televisão”? Ou deveria dizer-se da idade de ouro do argumentista televisivo?

Não vejo séries.

O Pequeno Quinquin pode continuar, a Arte está interessada. Você também... Porquê?

Aprofundar, aprofundar...

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