Dois embaixadores de Portugal

Há quatro anos, Jean-François Chougnet, o primeiro director do Museu Berardo de Lisboa, voltou a França. Entretanto, tem vindo a comissariar artistas portugueses. É com ele que Cabrita Reis expõe agora no Hôtel des Arts, de Toulon. Nem todos os embaixadores trabalham em embaixadas

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Exposição de Pedro Cabrita Reis no Hôtel des Arts em Toulon Joao Ferrand /JFFV
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Exposição de Pedro Cabrita Reis no Hôtel des Arts em Toulon Joao Ferrand /JFFV
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O artista Pedro Cabrita Reis Daniel Rocha
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Jean-François Chougnet fotografado em Setembro passado em frente ao MUCEM de que é o novo director AFP PHOTO / BORIS HORVAT

Normalmente, a esta hora, a zona junto à cidade antiga do porto de Toulon onde fica o centro de arte contemporânea do conselho superior do departamento do Var é um deserto de semáforos solitários para ruas vazias. Mas a inauguração da exposição, marcada para as 18h30, chamou centenas de pessoas. Adolescentes em grupos e pares, famílias com crianças, casais de cabelo branco.

Horas antes, durante a tarde, a visita para a comunicação social juntou também um grupo alargado, entre a imprensa e televisão locais e alguns redactores vindos de Paris, colaboradores de publicações como a conhecida revista de Cultura Les Inrockuptibles, por exemplo.

Pedro Cabrita Reis almoçou com o grupo. Depois, já no museu, filmou para a televisão, gravou para a rádio e, por fim, sentou-se junto a uma das 14 peças que fez expressamente para esta exposição e dispôs-se a responder a perguntas colectivas.

“Um artista não tem vida privada. Um artista pertence à História, não deve ter segredos. Portanto, perguntem. Estou aqui para responder”, diz a dada altura.

O silêncio quebra, aquece. Toda a gente sorri. Incluindo Jean-François Chougnet, que assina o comissariado da mostra e se mantém discretamente à parte, junto à saída da sala branca.   

Genial
Em Lisboa, Chougnet foi o primeiro director do Museu Berardo, cumprindo dois mandatos entre 2007 e 2010. Foi na qualidade de director que propôs – e conseguiu – a compra de várias peças de Cabrita Reis para a colecção do museu.

Foi no início, quando havia verbas para aquisições. E quando a colecção não tinha uma única obra deste artista, um dos mais relevantes do panorama português das últimas décadas. Hoje, Cabrita Reis está representado na colecção com 13 obras, pintura e escultura.

“Em Portugal há bons, excelentes artistas. Depois, há um artista genial, com capacidade para fazer projectos de dimensão absolutamente fora do comum: é Pedro Cabrita Reis”, dir-nos-á Chougnet.

Les lieux fragmentés é a primeira colaboração dos dois em França. Muito provavelmente não será a última. E é quase certo que não será a última de Chougnet com um artista português – de resto, já houve outras, antes.

É o que se quer quando se fala da importância de atrair agentes internacionais a território português, é o efeito a médio prazo que se pretende – que, esses agentes acabem por se tornar embaixadores do contexto nacional, sobretudo em circuitos aos quais um país pequeno, pobre e periférico tem dificuldade de acesso.

Chougnet diz que “não corresponde a um plano”, que não tem “uma estratégia”. “É mais uma ligação de coração minha a Portugal”, sublinha. Entretanto, os exemplos começam a somar-se.

Em 2012, foi Chougnet quem assumiu o comissariado da ultramediática exposição de Joana Vasconcelos no Palácio de Versalhes – um blockbuster que terá feito 1,6 milhões de visitantes e multiplicou por várias vezes a projecção internacional desta artista. Depois, foi ele o responsável geral de Marselha 2013, Capital da Cultura, durante a qual comissariou uma exposição de Miguel Palma na Associação Château de Servières.

A instalação construída por Palma na associação decorreu de uma residência nas terras vinícolas de Saint-Ser, junto ao maciço calcário da montanha de Sainte-Victoire. Cézanne, que nasceu e morreu ali ao lado, em Aix-en-Provence, olhava todos os dias para aquela montanha. E pintou Sainte-Victoire uma e outra vez. Daí nasceu a ideia de Palma de inverter perspectivas – obrigar os olhares a desviarem-se de Sainte-Victoire, em vez de se focarem nela: no sopé do maciço, sobre uma torre de aço, instalou um espelho a reflectir as vinhas em volta, as nuvens, o céu... Todos os dias, durante a sua residência, subia à torre para redireccionar o espelho e fazê-lo reflectir outra paisagem.    

Tal como a instalação que fez para a galeria da Château de Servières, esta peça integrou tanto os Ateliers Euro-Mediterrânicos de Marselha, capital da Cultura, como o projecto Ulisses, um programa do FRAC da região administrativa da Provença-Alpes-Costa Azul. 

Criados em 1982 como alavancas estratégicas de um pensamento descentralizador sobre o território nacional, em França, os FRAC – Fundo Regional de Arte Contemporânea – são uma importante força motriz do tecido das artes plásticas. Há 23 FRAC. Compõem uma rede de colecções de arte internacional que, em conjunto, detêm mais de 25 mil obras de arte de cerca de 4200 artistas, tanto franceses como estrangeiros.

Ao contrário dos acervos alocados a museus, é suposto que as colecções dos FRAC se definam pela sua mobilidade. São colecções nómadas cuja missão é assegurar que todas as zonas do país e todos os tipos de público tenham acesso à criação contemporânea. Por ano, estima-se que façam à volta de 400 exposições e cerca de 1300 eventos educativos. E é suposto que comprem as “propostas artísticas mais progressistas”.

Cabrita Reis está já longe de ser um desconhecido em França. Vários FRAC vêm adquirindo obras suas. No ano passado, o FRAC da região da Provença-Alpes-Costa Azul comprou uma. E essa peça integra agora, como empréstimo, a exposição do Hôtel des Arts.

Mas isto não é o mais relevante, diz Ricardo Vázquez, o director do centro. “Não era muito importante saber se o público daqui conhecia ou não o trabalho do Pedro. Conhece. Mas o que importa é que a sua obra se inscreve completamente na linha programática do centro.”

Esta orienta-se sobre dois eixos claramente definidos e que correspondem a grandes preocupações sociopolíticas da região: a questão da identidade mediterrânica, por um lado, as problemáticas ligadas à arquitectura e habitabilidade das cidades, por outro.

Com cerca de 170 mil habitantes, Toulon é apenas a décima-quinta cidade francesa, mas tem a nona mais alta densidade demográfica do país. E fica a menos de 65 quilómetros da segunda maior cidade de França: Marselha, que, com os seus 850 mil habitantes, tem vindo recentemente – e em grande parte através de uma aposta nas artes e na Cultura – a tentar descolar-se da sua imagem de capital nacional do crime violento.

Com um importante porto de mar desde a antiguidade clássica – o primeiro de França e o quarto com mais actividade da Europa –, Marselha tem uma história marcada pela imigração, sobretudo vinda de África, tanto do Norte como subsaariana. Estima-se que pelo menos um terço dos habitantes da cidade sejam muçulmanos, havendo quem aponte para valores até entre 35% e 40%.

Estudos demográficos recentes dizem que Marselha deverá vir a tornar-se na primeira cidade maioritariamente muçulmana da Europa Ocidental. E a zona em que tanto Marselha como Toulon se inscrevem todos os anos ganha população “de forma anárquica”. É por isso, explica o director do Hôtel des Arts, que “muitas vezes a habitação local é de má qualidade – constrói-se apressadamente”.

“Quando há dois anos me convidaram a assumir este cargo, a questão a que os responsáveis políticos da região me pediram que respondesse foi o que tinham os artistas a dizer sobre a habitação. E é assim que o Pedro se inscreve na linha de programação do centro. O trabalho dele está completamente dentro dessas questões e, ao mesmo tempo, é completamente exterior a tudo isso, recusa tudo isso. Foi esse posicionamento complexo, de um grande artista, que nos interessou.”

O interesse não surpreende. Desde os anos 1980 que a obra de Cabrita Reis tem vindo a falar por si nos circuitos internacionais. Aliás, juntamente com a de Julião Sarmento, tem vindo a abrir fronteiras para gerações seguintes.

Chougnet diz que, hoje, “não é difícil propor artistas portugueses aos museus franceses”. “Há poucos nomes conhecidos da cena portuguesa em França. Tal como o oposto é verdade. Mas há mais curiosidade em França, hoje, em relação à cena portuguesa do que em relação a outras, como a espanhola ou a italiana.” Porquê? “Talvez porque há uma melhor representação portuguesa em bienais internacionais.”

Um exemplo: a dupla constituída por Pedro Paiva e João Maria Gusmão, que, em 2009, foram os mais jovens artistas de sempre a representar Portugal em Veneza – estão “muito bem representados” na cena internacional, diz Chougnet. Isto, contra vários entraves, entre eles o facto de a circulação de artistas europeus na Europa ser hoje “mais um acontecimento casuístico do que propriamente organizado”.

Dizer não
Após encerrada a Capital da Cultura, Chougnet ficou em Marselha – foi nomeado para a direcção do Museu das Civilizações da Europa e do Mediterrâneo (MUCEM), a superestrela dos investimentos da Capital da Cultura: 191 milhões de euros para uma mega-estrutura construída sobre a água do porto – statement do arquitecto franco-argelino Rudy Ricciotti.

Com 11 mil metros quadrados de área expositiva dentro, o MUCEM e as suas zonas ao ar livre estão colados ao antigo forte de Saint-Jean, prolongando-o e actualizando-o. Em 2014, o conjunto fez mais de dois milhões de visitantes. E a vida vê-se.

Sábado, 15h, tarde de sol. O vento sopra forte e gelado vindo do mar, mas, por todo o lado, gente. Dezenas de visitantes passeiam, empurram carrinhos de bebé pelos pátios, tomam café nas esplanadas. Há centenas também pelas salas do MUCEM, às quais é mais difícil chamar gente.

Dos dois milhões de visitantes do complexo, pouco mais de um terço foi ver exposições. É um problema, mas, mesmo assim, foram 650 mil pessoas nas exposições temporárias de 2014, representando um investimento de 4,5 milhões de euros – nove vezes o orçamento de programação do Museu Berardo de Lisboa, por exemplo. Dá-se o caso de o discurso dos números não ser omnipresente.

No infinitamente mais pequeno Hôtel des Arts de Toulon uma exposição que dure três meses tem normalmente entre 10 mil e 20 mil visitantes, dependendo das suas características. Les lieux fragmentés, de Cabrita Reis, “deverá chamar muitos jovens”, diz o director do centro.

“Temos sempre muita gente, mas essa não é a nossa primeira preocupação. O que nos preocupa é que quem vem encontre satisfação, emoções e compreensão sobre o que vê. Isso implica um grande trabalho de acompanhamento, que é fundamental. Até porque a ideia é chamar também os habitantes desta zona do centro da cidade, que está hoje bastante degradada.”

Ruínas: há quem veja a obra de arte como uma estratégia de reconstrução do mundo a partir dos escombros – os escombros da história, da história da arte, do próprio mundo... O trabalho de Cabrita Reis, com os seus materiais comuns de construção, convive bem com essa ideia.

Calhas de alumínio, lâmpadas fluorescentes, cabo eléctrico negro, molduras de janelas, portas usadas. No Hôtel des Arts, Cabrita Reis explica que um bom artista é “mudo”, tal como os seus gestos. As boas obras de arte, diz ele, não fazem afirmações, mantêm “um diálogo único com cada visitante”. Mas Cabrita Reis não se coíbe também de se afirmar politicamente. “Porque uso estas luzes?”, pergunta a dada altura em resposta a um jornalista, “porque são, para mim, prototípicas da melancolia dos lugares pobres, seja o mundo do trabalho, seja o mundo dos que não têm casa, sejam as periferias, sejam os bidonville. As lâmpadas fluorescentes têm, ao mesmo tempo, uma força e uma tristeza, um silêncio e uma interrogação que vem desse mundo dos esquecidos. Não ousaria usar outra luz.”

Do ponto de vista formal, as lâmpadas fluorescentes são as únicas que traçam uma linha recta, minimalista. De um ponto de vista mais metafísico, são um tubo que tenta simular a luz natural do dia. “Querer substituir algures, numa fábrica, num atelier, numa garagem, numa cozinha perdida da periferia, a luz natural do dia com um tubo luminoso é uma pretensão entre o patético e o poético”, diz Cabrita Reis. “Isto interessa-me. Os materiais são uma temperatura. Por exemplo, interessa-me a madeira usada, nunca usaria plástico. O plástico é um material de direita. Pior: é um material social-democrata, que é a forma mais banal, mais miserável, mais vulgar da direita. Porquê? Porque representa a dita vitória de uma sociedade tecnocrática, prática – ficções capitalistas para fazer as pessoas pensarem que as suas vidas melhoraram. O plástico é uma mentira que eu recuso. É preciso, às vezes, saber dizer não, saber qual o peso político de certas atitudes, de certos materiais e saber dizer: não, não quero isto.”

Em Toulon, onde Cabrita Reis está a falar, a Frente Nacional, de Marine Le Pen, esteve à frente dos destinos municipais entre 1995 e 2001. Entretanto, voltou: conquistou o segundo lugar nas últimas eleições, muito à frente do Partido Socialista, com apenas metade dos votos.

“Em arte nada vem do zero”, diz ainda Cabrita Reis. “Cada objecto parte de uma longa história. E eu estou dentro dessa história, tal como as minhas obras, que espelham a forma como eu e elas nos posicionamos no mundo. Cada artista propõe um olhar sobre o mundo. E é o conjunto desses olhares que constrói civilização. A civilização não se baseia em ataques assassinos, como recentemente se viu em Paris. É justamente por isso que temos sempre de nos manter curiosos face à arte: é absolutamente necessário manter muito alto a criação, a liberdade e a imaginação – contra o horror.”

A jornalista viajou a convite do Hôtel des Arts

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