“Nunca se volta a viver a mesma vida. Há que inventar outra coisa”
Apesar do tema da morte e da ausência não ser fácil de tratar, Rosa Montero, no seu estilo fluído e coloquial, afasta-se decididamente da armadilha do sentimentalismo, construindo uma narrativa vibrante em que, curiosamente, se celebram a vida, os sentimentos e as ideias: A ridícula ideia de não voltar a ver-te
O desaparecimento de Pablo, em 2009, seis rápidos meses depois de lhe ter sido diagnosticado um cancro, deixou Montero em choque, a debater-se nos estranhos e insondáveis caminhos da perda e do luto. A experiência de Marie, química e física polaca naturalizada francesa, detentora de dois prémios Nobel, mulher apaixonada, cientista dedicada e lutadora desassombrada, foi o ponto de partida para a escrita de A ridícula ideia de não voltar a ver-te (Porto Editora), publicado originalmente em Espanha, em 2013. Foi um trabalho progressivo, composto à medida da invocação de ideias e sensações, sugeridas ao ritmo da recordação de Marie Curie, por entre citações e memórias, fotografias e fragmentos, sem uma ordem cronológica específica. Apesar do tema da morte e da ausência não ser fácil de tratar, Montero, no seu estilo fluído e coloquial, afasta-se decididamente da armadilha do sentimentalismo, construindo uma narrativa vibrante em que, curiosamente, se celebram a vida, os sentimentos e as ideias.
É difícil, para si, reviver estes dolorosos acontecimentos, agora, passados mais de cinco anos?
Não. O que se passa é que eu nunca escrevi narrativas, novelas ou romances autobiográficos, no sentido restrito do termo, mas sim livros que são como sonhos, sonhados de olhos abertos, que têm a ver com algo muito profundo. É costume perguntarem-me, exactamente por causa do tema, se este livro é mais íntimo ou mais excessivo do que os outros e eu respondo que não.
Rejeita a ideia da escrita como catarse, como exercício de sobrevivência?
Este livro é realmente intenso mas não mais do que todos os outros. De cada vez que escrevo, mergulho sempre no mesmo espaço de emoção. Em cada romance, importa-me aprender muito e, se não aprendo, a obra não funciona, não está completa, não tem significado.
Para si, a escrita é, então, uma descoberta?
Claro! A escrita, para mim, não serve para demonstrar o que quer que seja, mas sim para aprender. Se não acrescentar algo ao meu conhecimento é porque não escrevi bem. Ao longo destes últimos anos, tenho tentado continuar a retirar sempre algum ensinamento deste meu trabalho. A minha vida, essa, continua: acabei outro livro – que vai sair em Espanha, no próximo dia 17 de Fevereiro – protagonizado pela detective Bruna Husky (personagem que já surgiu em Lágrimas na Chuva, Porto Editora) e, curiosamente, creio que esta será, talvez, a minha obra mais pessoal, a mais próxima do cerne da minha existência, nestes últimos tempos, tão complicados.
Embora afirme ser avessa ao exercício da autobiografia, poucos são os escritores que escapam ao desenrolar de memórias, seja à maneira de Proust, ou em forma de diários como acontece com Virgínia Woolf. Para além dos detalhes pessoais inscritos neste livro, utiliza alguns na sua ficção?
"Toda a autobiografia é ficção e toda a ficção é autobiográfica”, não é verdade? Pela minha parte, ao escrever, procuro a lonjura, a distância, a máscara, em vez da aproximação. Escrevo sobre um taxista de quarenta anos que perdeu as mulheres ou sobre uma puta da Serra Leoa, ou sobre uma guerreira do século XII ou sobre uma detective andróide e parece que estas personagens nada têm a ver umas com as outras; no entanto, tudo isso me permite ir ao cerne da minha visão, à substância simbólica ou metafórica, das questões essenciais. Por isso, digo sempre que aquelas pessoas que lêem os meus livros ficam a conhecer-me melhor do que eu, a mim mesma.
A “ideia ridícula” que surge no título tem a ver com o absurdo, com o desencontro ontológico entre o desejo constante, por parte do ser humano, por um significado, pela completude, e a incapacidade de sustentar tal assumpção?
Sim, quis transmitir a ideia de que a morte – a nossa e a dos nossos entes queridos – é algo que não nos cabe na cabeça. É impensável, inimaginável. Haver alguém, uma pessoa que nos é tão próxima, que estava ali e já não está, é como uma brincadeira de mau gosto.
Terá sido por causa da sua experiência como jornalista que sentiu a necessidade, neste livro, de colocar alguma distância em relação à sua experiência pessoal? Foi para afastar qualquer sentimentalismo que se socorreu do diário e da vida de Madame Curie?
Exactamente. Quando o Pablo morreu, os meus amigos, que sabem como a escrita me salva literalmente a vida, disseram-me para escrever um livro sobre o luto, sobre a morte e eu disse que não, que não o iria fazer, porque não tenho essa relação com a literatura. Repito: para mim isso não seria literatura. Nunca escrevi um diário, não mantenho esse tipo de actividade. E quando recebi os escritos de Marie Curie, tinham passado dois anos e meio sobre a morte de Pablo. Já tinha feito o meu luto e por isso foi possível abordar o tema da morte no seu sentido absoluto, não somente a partir da minha experiência mas também como algo que é comum a todos nós.
Logo no início afirma com convicção que este é um livro sobre a vida.
Sim, é sobre o contrário da morte, é sobre o sentido da vida (se é que existe um sentido), sobre a capacidade do ser humano de aprender a viver mais plenamente, cada momento. Porque a vida é tão-somente este momento que estamos a viver, agora. Há quem viva mais intensamente no passado ou no futuro mas eu tento viver o presente; e, para o fazer serenamente, plenamente, existe uma altura em que é imperativo chegar a um acordo com a morte, a minha, a dos amigos, a dos entes queridos.
No entanto, o que está contido neste livro é a ideia de que a morte física de alguém que nos é próximo abre uma ferida brutal na nossa psique e até no nosso corpo.
Claro, é sempre inesperado e violento. E o choque da morte prematura e súbita de alguém muito próximo – como aconteceu com Marie e comigo – é irrecuperável. Nunca se volta a viver a mesma vida. Há que inventar outra coisa.
Para além da dor psicológica, emocional, refere uma espécie de desagregação física. Porque existe a história paralela do corpo da Marie Curie, a deformar-se cada vez mais devido à radioactividade, mas também como resposta ao desgosto, à sua infinita tristeza. Aprende-se alguma coisa, com a dor?
A dor ensina ou deve ensinar algo mas quem me dera que pudéssemos aprender de outra forma. No entanto, é impossível viver sem desgostos e, por isso, o que importa é adquirir sabedoria para lidar com o sofrimento que pode destruir-nos – conheço muita gente nessa situação. Creio ser importante a consciência da dor dos outros para podermos lidar melhor com a nossa. É importante que o desgosto nos sirva para olhar a dor dos outros de uma forma mais amável, mais compreensiva.
Fala também da culpa. ("A culpabilidade é uma emoção tradicionalmente feminina”, pág. 63). Que culpa é essa?
A culpa existe sempre. Sentimo-nos culpados por estarmos vivos, por sobreviver. Escrevi essa frase mas, na verdade, a culpa é tanto feminina como masculina. Por isso é tão difícil sair do luto e, depois, voltar a escrever.
Há aquela bela frase de Kafka (repetida por J.M. Coetzee) que diz que “…um livro tem de ser um machado que quebra o mar gelado dentro de nós"
Sim, escrever é isso mesmo.
A sua obra é atravessada pela ideia de perda – perdas psicológicas, sentimentais mas também físicas, o que remete para a terrível noção de amputação.
É verdade, esses são os meus fantasmas da escrita. Todos os escritores os têm, de uma forma ou de outra. Os meus personagens ficam sem dedos, braços, mãos. (risos) É uma especificidade minha, creio que é a forma de, metaforicamente, transpor a ideia de que, na vida, estamos sempre a perder algo, pessoas, memórias, possibilidades de ser. Escrevi sobre isso, sobre a teoria de que nós, os escritores, vivenciámos uma perda terrível, na infância.
Fala desse trauma em A Louca da Casa (Porto Editora).
Sim, é como se tratasse de um cataclismo interior que se repete, ciclicamente, ao longo das nossas vidas.
A literatura fantástica, futurista – é conhecido o seu interesse pela obra de Ursula Le Guin – parece ser um género em que se sente completamente à vontade. Será que esse imaginário pode equiparar-se ao que se experiencia numa fase de luto? Como se estivesse numa twilight zone, fora de si própria?
Não, não me parece que haja correspondência. É verdade que o luto tem a ver com uma sensação de irrealidade – nada é claro, ou límpido – que, essa sim, é um dos temas dos meus livros. Interessa-me a sensação da falta de credibilidade daquilo que vemos e experienciamos, da nossa própria identidade. Sempre gostei de ficção científica e, apesar de a minha formação em Letras, mantenho uma enorme curiosidade em relação às Ciências, como mostro bem em Instruções para Salvar o Mundo ( Porto Editora). Creio que, na Ciência, existe mais fantasia e mais magia do que nos contos de fadas.
Para além das referências à vida dos Curie e das suas descobertas, existe uma imagem recorrente fortíssima, neste livro, que é a das minúsculas partículas do rádio a brilharem no escuro laboratório dos Curie e que parecem exercer um fascínio especial sobre Marie.
São como espíritos maléficos…
O rádio, o polónio, são isolados à custa de incontáveis e sacrifícios e surgem como algo “mágico” que deslumbra pela sua beleza, que parece destinado ao bem da humanidade, mas que contém, no seu cerne, um potencial destruidor e mortífero, a radioactividade. Será essa uma das suas alegorias da existência?
Sim, a vida é essencialmente paradoxal, as contradições da realidade são inquietantes e assustadoras.
Neste livro, existe um cruzamento entre actos e pensamentos profundos com detalhes banais, quotidianos, tarefas domésticas, as notícias de jornais, as memórias breves.
São os testemunhos da existência, indispensáveis quando escrevo. Para mim, também é muito importante o sentido de humor, essa ferramenta essencial para enfrentar o mundo que impede a cegueira da auto-suficiência e que corrige os deslizes. Se nos pomos a escrever coisas pomposas – mesmo que sejam sobre assuntos tão fortes – acabamos a dizer disparates.
Nos seus livros existem sempre mulheres poderosas e destemidas. Marie Curie é uma delas. (Fala da sua dureza.) Crê que as mulheres – que dão a vida – estão melhor “equipadas” para enfrentar a morte do que os homens?
É possível, mas não sei. Ninguém está preparado para uma desgraça. No entanto reconheço que, nas mulheres, há um constante protagonismo do corpo, uma consciência dos ciclos, desde o nascimento, passando pelo crescimento e pela decadência, com todas as suas dores que, em geral, é negada pelos homens. Talvez estejamos mais perto do real, da carne. Há que enfrentar tudo isso com desprendimento, gostar de nós próprios, com tranquilidade, ter a noção de que estamos continuamente a passar por diferentes experiências, não as mesmas do passado, não a repetição dos dias, mas a vivência de um novo ciclo.
A meio do livro, escreve que vivemos tempos radioactivos…
Sim, cada vez mais. São tempos agressivos, infectados pela morte. Experimentamos crises de todos os valores, do sistema democrático. Olho em volta e vejo uma total ignorância sobre o que é o totalitarismo, vejo a repetição de respostas fáceis e primárias a problemas muitíssimo complexos. Parece que estamos a viver (mais um) apocalipse. Só me encoraja e anima a capacidade do ser humano em mudar, em revitalizar-se.