Um piano afinado pelo cinema

Convidado para pianista residente da Cinemateca Portuguesa em 2015, Filipe Raposo será uma constante no acompanhamento de filmes mudos ao longo do ano. A pretexto da primeira sessão, no dia 29, com um filme de D. W. Griffith, estivemos com ele num passeio pela relação entre música e cinema.

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Filipe Raposo
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Vertigo, de Alfred Hitchcock
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Barry Lyndon, de Stanley Kubrick
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Aurora, de F. W. Murnau
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Anticristo, de Lars von Trier

Mas nas frestas dos temas, agrafadas às citações de Schubert ou aos destinos das secções improvisadas, discretamente encontravam-se homenagens subterrâneas ao cinema de Stanley Kubrick, Andrei Tarkovski ou François Truffaut. O Trio Opus 100 (1828) de Schubert activava no músico não apenas a vénia a um dos compositores que revolucionaram o curso da música mas igualmente a imagem de Barry e Lady Lindon à luz das velas, a uma mesa de casino, trocando olhares de desejo (Barry Lyndon). Kubrick ter-se-á fixado na composição de Schubert para a cena depois de ouvir todos os discos de música do século XVIII que descobriu sem encontrar um tema amoroso com o potencial trágico oferecido pelo Trio.

Esta atenção extrema ao detalhe, fonte de fascínio de Filipe Raposo pela obra de Kubrick, constitui uma das principais razões para mencionar o realizador como uma das suas maiores inspirações musicais. “Há realizadores que me marcaram e me influenciaram esteticamente naquilo que faço hoje como artista”, admite ao Ípsilon a partir de Estocolmo, onde se encontra a terminar um mestrado em Jazz e Performance. “Seria errado dizer que as influências que tenho como compositor derivam exclusivamente de outros compositores e afirmo que derivam também do cinema.”

A devoção pelo cinema de Kubrick, em especial, transparece não apenas nessa passagem em First Falls mas também no entusiasmo com que menciona o facto de o realizador ter passado “dois anos à procura de locais para fazer Barry Lyndon” ou com que comenta o recurso a películas e lentes específicas com o objectivo de usar o mínimo possível de luz artificial. “Tanto o tema principal do Händel, Sarabande, como este Trio de Schubert, são temas que poderiam ser conhecidos de um público ligado às salas de concerto”, reflecte o pianista. “Há uma espécie de missão do Kubrick em divulgar compositores, como o Ligeti, que usou no Shining, no Eyes Wide Shut e no 2001 – Odisseia no Espaço, ou o Penderecki. De repente, eram ouvidos por milhões de pessoas em todo o mundo e, de outra forma, seriam compositores de minorias.”

Se a sombra de Kubrick se faz sentir em First Falls, o realizador não faz, naturalmente, parte do lote de filmes mudos que Filipe Raposo acompanhará ao piano durante o ano de 2015, enquanto músico residente da Cinemateca Portuguesa. A primeira sessão acontece na próxima quinta-feira, 29, com True Heart Susie, de D. W. Griffith. Griffith faz parte de um núcleo duro de autores a que foi habituando as teclas do seu piano desde que, em 2004, se deu o primeiro convite da Cinemateca para ilustrar sonoramente as exibições de cinema mudo, a par de F. W. Murnau – “é um dos realizadores com que mais me identifico”, confessa; “Aurora, Fausto ou Uma Rapariga da Cidade são filmes que me marcaram muito e tive oportunidade de acompanhar” – e de Viktor Sjöström. “Depois, com a crise, cortaram com os acompanhamentos ao vivo, embora tenha continuado a fazer alguns na Cinemateca Júnior. Agora, em 2015, o novo director da Cinemateca [José Manuel Costa] decidiu voltar ao acompanhamento de filmes mudos e fui convidado para músico residente.”

A prática na Cinemateca Júnior foi-lhe permitindo desenvolver algumas relações de intimidade com obras específicas. Nos casos de Steamboat Bill Jr., de Buster Keaton, e O Circo, de Charles Chaplin, as suas contas por alto devolvem números a rondar as 30 ocasiões em que acompanhou a cada um. A ponto de conhecer intimamente cada cena, respondendo em tempo real, “como se estivesse sincronizado com o filme. “Nestes filmes de carácter cómico”, diferencia, “acho que pode haver esse tipo de acompanhamento mais colado à cena. Mas a música nunca deve sobrepor-se à imagem no cinema mudo. Está apenas a servi-la.” Não hesita por isso em afirmar que “é importante saber quando retirar as mãos do piano”, com a consciência de que uma cena pode sair mais valorizada pela sua inacção. Este respeito absoluto pelos filmes leva-o a ter sempre presente o cuidado de não tornar a sua participação redundante. Nas obras de Murnau, exemplifica, por conterem desde logo a linguagem do expressionismo alemão, desde logo percebeu que “não precisava de carregar esse expressionismo, mas apenas aflorar aquilo que já está presente.”

A memória emocional

Olhando para trás, Filipe Raposo vai apanhando pistas de uma estreita ligação entre música e cinema no seu próprio passado. Foi graças a Round Midnight, filme de Bertrand Tavernier protagonizado pelo saxofonista Dexter Gordon que aos 10/11 anos teve no jazz uma epifania que lhe mudou a vida. E foi nas aulas com o compositor Eurico Carrapatoso, fundamental no seu percurso formativo, mostrando-lhe tanto Jimi Hendrix como Bach, que tomou contacto com a técnica que o professor apelida de “corte cinematográfico”, comparando a passagem de uma cena para outra no cinema à análoga transição de motivos rítmicos, por exemplo, em A Sagração da Primavera, de Stravinsky. “É curioso que estas linguagens musicais surjam precisamente no século XX quando o cinema aparece. Não sei se por influência ou não do cinema, mas o facto é que existem estes recursos técnicos comuns às duas linguagens.”

O olhar arguto capaz de estabelecer nexos entre as duas artes e de destrinçar sugestões narrativas cirurgicamente colocadas por cineastas na utilização da música conduz-lhe o discurso para Kubrick, mas também para o seu uso criterioso no cinema de Lars von Trier. Em Melancolia, o lançamento do motivo inicial faz-se com Tristão e Isolda, de Wagner, “um exemplo emblemático da História da música em que o chamado ‘acorde de Tristão e Isolda’ simboliza a passagem do romantismo tardio para a modernidade e anuncia a tragédia”. “Lars von Trier apropriou-se desse anúncio trágico e usa-o precisamente no prólogo a avisar-nos que aquilo vai acabar mal.” Já na cena inicial de Anticristo, refere, com o casal Charlotte Gainsbourg / Willem Dafoe copulando em slow-motion ao som da ária de Händel Lascia ch’io Pianga, ao mesmo tempo que o filho avança na direcção de uma janela aberta, “essa morte como acontecimento trágico que marca toda a narrativa exige um contraponto entre o nascimento, a concepção, e a morte”. “São momentos de síntese da humanidade que acho brilhantes em termos cinematográficos, onde a música tem um papel importantíssimo. Para quem não conhecia aquela ária e viu o filme, ela ficará para sempre na sua memória emocional.”

No que respeita a memórias emocionais, Filipe Raposo cita a cena do chuveiro de Psico, de Hitchcock, como paradigma absoluto de relação instintiva entre música e imagem. “Basta-nos o primeiríssimo ataque das cordas na região aguda para sabermos imediatamente de que filme se trata e activarmos todo o leque de memórias associadas ao filme”, diz. “A música em cinema é muito poderosa neste sentido.” E em poucos casos terá alcançado um vínculo tão perfeito à linguagem cinematográfica como na colaboração entre Hitchcock e o compositor Bernard Herrmann. “A leitura emocional e artística que ele fazia dos filmes e das imagens do Hitchcock é simbiótica. Até em Os Pássaros, o seu único filme sem banda sonora, Herrmann foi convidado para fazer o desenho de som. Em Vertigo, na cena maior do Hitchcock em que não existem diálogos, são cerca de 21 minutos sem diálogos. Aquilo que seria a destruição de qualquer filme não o é porque a música cumpre o papel de condução da narrativa. É um exemplo brilhante. Não consigo imaginar o Hitchcock sem o Herrmann.”

É essa, de facto, a aspiração das notas aplicadas a cada cena – que um filme possa (parecer) perder a respiração se lhe for roubado o tapete musical.

 

Barry Lyndon, de Stanley Kubrick

Devoto pelo cinema de absoluta minúcia de Stanley Kubrick, Filipe Raposo homenageia o realizador no seu primeiro álbum, ao incluir uma passagem do Trio Opus 100, de Schubert, tema essencial na banda sonora de Barry Lyndon.

Aurora, de F. W. Murnau

“Murnau é um dos realizadores com que mais me identifico”, confessa o pianista em relação aos autores de cinema mudo que tem acompanhado ao piano. Foi com o expressionismo alemão de filmes como Aurora que descobriu a importância de a sua música não poder sobrepor-se à cena.

Anticristo, de Lars von Trier

Os grandes compositores souberam e sabem sintetizar momentos da História da música, afirma. “Tudo aquilo que estava antes deles passa a estar contido e desenvolvido através da sua obra. E Lars von Trier faz o mesmo apropriando-se da sua música”, como na cena inicial de Anticristo, ao som de Händel.

Vertigo, de Alfred Hitchcock

Para o pianista, “a leitura emocional e artística” que o compositor Bernard Herrmann fazia dos filmes de Hitchcock “é simbiótica”. Em Vertigo, numa das mais famosas cenas do cinema que dispensam o diálogo, “a música cumpre o papel de condução da narrativa”. “Não consigo imaginar o Hitchcock sem o Herrmann”, admite.

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