Grécia: retido no átrio da Europa
Não podia voltar para trás. Não podia seguir em frente. Fugiu do Afeganistão e ficou à entrada de um mundo que imaginou próspero. Omid está encurralado na Grécia.
Conheci-o no Outono de 2013. Era domingo. Para impedir a ignorância de se tornar preconceito, queria conhecer muçulmanos oriundos de zonas radicalizadas. Também queria perceber o que poderia significar ficar encurralado num país em crise, átrio de uma União Europeia que se imagina próspera.
Não funcionavam as campainhas do edifício cor-de-rosa desbotado, no centro de Salónica. Chamei-o. Tinha 19 anos. Não era alto, nem baixo, nem gordo, nem magro. Usava sapatilhas, calções, t-shirt. “Se saísse assim no Afeganistão, matavam-me”, disse-me. “Gosto desta liberdade. Gosto de vestir o que quero. Gosto de dizer o que quero. No Afeganistão não podia dizer o que queria….”
Viviam em Torkaman Kalay, terra de pouca paz, na província de Oruzgan, no Afeganistão. Nos anos 80, lutas entre forças pró-soviéticas e mujahedin, guerrilheiros afegãos apoiados pelos Estados Unidos. Nos anos 90, guerra civil. Era Omid ainda bebé, a província foi tomada pelos taliban. Ia nos sete anos, aterraram as tropas lideradas pelos Estados Unidos. Cresceu desconfiado, vigilante. “Tinha medo. A nossa casa podia ser atacada a qualquer momento. Saía de casa e não sabia se ia voltar. Podia ir à mesquita rezar e aparecer alguém com explosivos no corpo”.
Omid via como se vestiam os gregos da sua idade e era como eles que se vestia, mas por mais que vestisse calções e t-shirt não conseguia ser tratado como igual. Naquela manhã, estivera na Torre Branca e metera conversa com uma rapariga. Mal se revelara muçulmano, ela fora embora. “Não percebo….”
Sabia ser conhecido o modo como as mulheres são tratadas no Afeganistão, mas esperava que não o metessem nisso. “A minha forma de ver as mulheres mudou. As mulheres não iam à escola no Afeganistão. Era OK para mim. Não pensava nisso. Não perguntava: porquê? Não conhecia outra realidade. Para mim, o mundo era aquilo.” Visto dali, de Salónica, tudo aquilo lhe parecia absurdo. Ainda na véspera, a família ouvira nas notícias do Afeganistão que um homem matara a irmã. “Porquê? Porque ela estava a falar com um gajo?! Agora é século XXI!”, insurgia-se.
Sim, tenho pensado muito em Omid. Que dirá do modo como, fechadas as fronteiras terrestres, a Grécia responde ao influxo de quem, fugindo sobretudo da Síria, tenta entrar pelas ilhas do Egeu? Que expectativa terá em relação às eleições legislativas de domingo? Como encarará os atentados em França? Como verá crescer o medo de pessoas como ele e a família dele? Que pensará do Afeganistão, agora que as tropas americanas estão a partir?
“Detesto o Afeganistão!”, disse a mãe. “Nunca mais quero voltar!” Os taliban tinham proibido as mulheres de trabalhar e de estudar. Só podiam sair acompanhadas e sem mostrar mais de dois centímetros do rosto. E a entrada das tropas internacionais, em 2001, não trouxera sossego. “De noite, atacavam os taliban. De manhã, apareciam os estrangeiros”, recordou o pai.
Para trás, nem Omid via caminho. “Se vais para fora e voltas, aparece logo alguém a perguntar: ‘Onde estiveste? Porque voltaste agora?’ Uns iam chamar outros. Iam acusar-nos de ir à procura de notícias, de espiá-los. Podiam prender-nos, torturar-nos, matar-nos, sei lá”, comentou. Não era só isso. “Queria uma mentalidade nova. Queria mais respeito pela diferença.” E não acredita que isso seja possível no médio prazo.
Foi ele que convenceu o pai a sair do país. “Temos de ir embora”, começara a dizer, já adolescente. “A minha vida não é boa, não tenho ideia do que posso fazer, não tenho futuro”, insistia. “Não temos dinheiro para sair”, respondia-lhe o pai. Não desistiu enquanto não o convenceu. E recorda cada detalhe da viagem feita em 2010. Não se coibiu de contar, no seu inglês rudimentar.
Precisavam de sete mil dólares por pessoa. Havia quem fizesse a viagem por 1500, mas isso implicava caminhadas intermináveis, perigos incalculáveis. Tinham uma parte. Pediram a outra a um tio endinheirado, que vive em Cabul. Saíram de noite. Cada um carregava um saco com algumas roupas e alguma comida. Omid trazia três pares de calças, outras tantas túnicas, um casaco, um pão, um bocado de queijo, um cantil com água. A rede de passadores trataria do resto.
Na fronteira com o Irão, o passador avisou: “Actuem como turistas.” Tratou de sossegá-los, desvalorizando a eficácia dos mecanismos de controlo. Só teriam de entregar o passaporte e de responder a algumas perguntas. Alguém abriria os seus passaportes e olharia para as suas caras. A mãe transpirava de susto. Vinham-lhe à cabeça histórias infelizes. “Não posso fazer isto”, dizia. “Tens de fazer, não podemos voltar para trás”, respondia-lhe Omid. O pai anuía, receoso. A irmã seguia, calada. Alheio a qualquer perigo, dormia o irmão mais novo.
Ficaram três semanas em Teerão, onde tantos afegãos fazem vida. Era o último mês de Verão. Era como se estivessem a gozar férias. Empenharam-se em representar esse papel até receberem a indicação de que iriam partir outra vez. Viajaram então de carro até Van, no Sudoeste da Turquia. Saíram de madrugada, chegaram noite cerrada. Passaram por lugares que Omid não sabe identificar. Lembra-se de avistar Tabriz, a maior cidade da província do Azerbaijão Oriental. E de mudar de transporte em Van. Tardaram uns dois dias a chegar a Istambul, parando quase só para libertar o corpo.
Noite após noite, partiam camionetas de Istambul para a fronteira com a Grécia, traçada pelo rio Evros. Homens, mulheres e crianças socorriam-se de barcas, bóias ou cordas esticadas para o atravessar. Era preciso remar. Nem todos sabiam fazê-lo. Por vezes, a força da corrente virava os barcos. Omid e a família atravessaram de barco. No outro lado, ele telefonou ao “passador”.
– O que faço agora?
– Em que lado está a Lua?
– Está à minha frente.
– Vira as costas para a Lua e caminha para a esquerda.
Avistaram uma luz de lanterna. Seguiram nessa direcção, em silêncio. Caminharam das onze da noite às sete da manhã. De súbito, polícia. Estavam cansados. Não comiam há muitas horas. Só Omid conhecia algumas palavras em inglês. Não lhes trouxeram intérprete. Um polícia, talvez um chefe, gesticulava, falava alto. Omid olhava-o, assombrado. O homem gritava com o pai, apavorado por não o compreender, por não lhe saber explicar que para trás não havia caminho. A certa altura, o polícia irritou-se, levantou o braço. E Omid saltou da cadeira, gritou-lhe que parasse.
Ficaram ali três dias. Temeram ficar mais. Sobravam histórias de famílias que ali estavam há semanas, ao monte, à espera da autorização temporária. Quando os libertaram, metendo-os na camioneta para Atenas, dizendo-lhes que tinham um mês para abandonar o país. Omid pediu ajuda ao tio, que o encaminhou para um amigo. E esse amigo recomendou-lhes que fossem para a estação de Attiki, onde vagueavam tantos estrangeiros. Foi ele que os encaminhou para Efi, uma assistente social do Conselho Grego para os Refugiados. E foi ela que lhes explicou que poderiam requerer asilo e lhes disse que viajassem para Salónica que ali haveria lugar para eles.
“Eu não sabia que a Grécia estava assim”, disse-me Omid. “Eu pensava: Grécia é Europa. Vai ser bom. Aqui não há vida para nós. Não é só pelo desemprego. As pessoas não gostam de nós…” A ascensão da extrema-direita era só o lado mais visível do medo pelo “outro”, pelo que vem de fora.
Naqueles quatro andares, em 20 quartos, moravam mais de 70 pessoas, 30 das quais crianças, a maior parte afegãs, algumas palestinianas, curdas, sírias, somalis. Os inúmeros sapatos, de diferentes tamanhos, arrumados dois a dois, em frente a cada porta, sinalizavam o muito aperto.
A placa descerrada em 2000 subsistia, mas já não havia um Centro de Refugiados e Requerentes de Asilo propriamente dito. Em 2010, no pico da crise, a ONG que o geria com fundos púbicos partiu sem assegurar a continuidade do serviço. Desde então, residentes tentavam desenrascar-se, com a ajuda alimentar do município e apoio de organizações como o Conselho Grego para os Refugiados.
De vez em quando, zangas. Bastava que viesse roupa ou calçado e que levassem o que devia ser visto por todos. Só havia seis chuveiros – três para homens e três para mulheres. De forma rotativa, mulheres faziam almoço para todos. De forma rotativa, homens limpavam espaços comuns.
O pai nunca quis morar na Grécia. Um tio, que já ali morava, avisara: “A Grécia não é boa para vocês. Podem entrar, mas é para sair. Se não for para sair, não vale a pena.” E o pai respondera: “O meu dinheiro termina na Grécia. Vou trabalhar. Quando tiver mais dinheiro, saímos.”
Os pedidos ganham pó nos serviços gregos – há quem tenha esperado dez anos. A autorização de trabalho para requerentes de asilo é muito condicionada. E a taxa de desemprego vai batendo máximos históricos. O carrinho de mão usado por Omid e pelo pai para recolher sucata estava à entrada do prédio. Era raro fazerem com aquilo mais do que 20 euros por semana.
“Sabes, a Alemanha agora está bem, mas não quer aceitar pessoas de outros países”, disse Omid. Na União Europeia, quem aprecia a candidatura de asilo é o país que serve de porta. Se as pessoas avançam para outros Estados-membros sem documentos, são devolvidas à procedência.
Privaram-se de muito para juntar dinheiro para fugir para a Alemanha. Um primo, que vive lá, emprestou-lhes três mil euros. Outro, que vive na Noruega, dois mil. Omid ficaria, pelo menos até terminar o secundário - faltavam-lhe dois anos. A irmã também ficaria - casou-se. O pai, a mãe e o irmão mais novo prepararam-se para avançar, mas o passador desapareceu com os oito mil euros.
Não desistiu de encontrar o seu lugar. “Gosto da Europa. Aqui, as pessoas têm liberdade, podem fazer o que querem, escolher o futuro. Bom… o futuro, sabes… Essa questão para mim é difícil. Não sei o que vai acontecer amanhã, depois de amanhã, mas eu amo a vida e aceitarei o que ela me trouxer…”
Tenho pensado em Omid. Ele, o pai, a mãe, o irmão naquele quarto, com o chão coberto por um tapete persa.Tenho pensado em Omid e é (também) por isso que não tenho medo.