Maçãs: O Minho tem um património por descascar
Raúl Rodrigues, professor da Escola Superior Agrária de Ponte de Lima, coleccionou mais de 60 variedades regionais deste fruto nos últimos anos. E quer usar esse trabalho para mostrar que é possível recuperar uma produção praticamente perdida.
Até meados do século passado, nos pomares do Minho – como, de resto, nos de todo o país – cresciam maçãs de várias cores e feitios, fruto de séculos de produção e cruzamentos. Mas, desde então, “a cultura da macieira tem vindo a decrescer e com tendência para o desaparecimento”, alerta Raúl Rodrigues. Hoje, restam apenas alguns pequenos pomares de variedades comerciais e, em menor escala, da maçã Porta-da-loja, uma variedade regional que tem conseguido manter um nível de procura que lhe permite resistir.
As restantes variedades foram, gradualmente, deixando de ser produzidas, desaparecendo praticamente dos terrenos. O processo deve-se sobretudo aos Planos de Fomento Frutícola Nacionais, lançados durante o Estado Novo. “Foram introduzidas novas variedades, mais produtivas e com melhor aceitação pelo mercado”, admite este professor, doutorado em Ciências Agrárias. Os pomares nacionais começaram, então, a ser usados para a produção das variedades de maçã mais em voga e que eram muito apreciadas a nível internacional. Eram as maçãs Royal Gala, Golden ou Reineta, que são as que ainda hoje encontramos com mais frequências nos pomares comerciais e nos mercados nacionais.
Ciente disto, Raúl Rodrigues foi atrás das espécies quase desaparecidas no Minho, num processo que começou há sete anos. Desde então, conseguiu levar para os terrenos do campo experimental da Quinta do Convento, em Ponte de Lima, exemplares de 62 variedades de maçãs da região. O professor sentia a “necessidade de preservar o património genético frutícola” local. “É um legado importante dos nossos antepassados”, justifica.
Nos últimos anos, Raúl Rodrigues tem multiplicado as suas “missões de recolha”, percorrendo as zonas rurais do Minho em busca de macieiras ainda desconhecidas. A cada novo achado, é recolhido material vegetal que, depois, é enxertado na colecção. As variedades recolhidas são depois estudadas, sendo registados os seus parâmetros morfológicos (tipo de folhas, flores, frutos, hábitos de frutificação e vegetação) e fenológicos (que nos permitem conhecer a época de abrolhamento, floração e maturação dos frutos), bem como a aptidão de cada tipo de maçã. Entre as maçãs do Minho existem as que se prestam ao consumo em fresco, mas também ao fabrico de sidra, confeitaria ou compotas, por exemplo.
O professor da Escola Superior Agrária de Ponte de Lima afirma ainda que o desaparecimento progressivo das maçãs do Minho é também consequência do desconhecimento destas variedades regionais. De resto, algumas das maçãs que integram esta colecção não são familiares ao público em geral nem eram, até há bem pouco tempo, conhecidas da comunidade científica.
A colecção mantida por Raúl Rodrigues tem sido utilizada para actividades de investigação e também para aulas de campo, que o docente realiza com os seus alunos, e como matéria-prima para teses de licenciatura e mestrado de estudantes do Instituto Politécnico de Viana do Castelo, do qual faz parte a ESAPL. O professor quer agora pôr esse conhecimento ao serviço da economia da região.
Culturas sustentáveis
Todas as 62 variedades de maçãs que fazem parte desta colecção podem ser encontradas no Minho, embora algumas não sejam exclusivas da região. Em todo o caso são variedades perfeitamente adaptadas ao clima e solos minhotos, com uma herança genética que as torna particularmente resilientes a determinadas pragas e maleitas. Além disso, a colecção tem a particularidade de estar a ser implementada no modo de produção biológico. Assim, a protecção contra pragas e doenças torna-se mais fácil de obter do que na produção industrial, uma vez que são criadas condições naturais para que inimigos naturais das pragas se desenvolvam, fazendo com que o equilíbrio natural ocorra na maioria dos casos.
Para Raúl Rodrigues estas características podem ser uma mais-valia, no sentido de fazer ressurgir a produção de algumas destas maçãs na região. O modelo agrícola hoje predominante “é insustentável”, diz. “É altamente penalizador para o ambiente e limitador do acesso aos mercados por parte dos pequenos agricultores”, denuncia. O professor da ESAPL tem, por isso, advogado a promoção de uma fruticultura sustentável, assente em variedades autóctones e adaptadas à região em que são produzidas: “É uma das principais saídas para a conservação da biodiversidade regional e com potencial para o desenvolvimento económico”.
Património imaterial
As variedades regionais “podem ser exploradas economicamente”, defende Raúl Rodrigues. Para isso, acredita ser necessário divulgar estas maçãs, junto dos consumidores. “Isto é um património”, sublinha. “Esse conceito não se resume à arte de fazer talha, moldar o granito ou o ferro forjado. Existe um património vegetal, sobre o qual se foi construindo património imaterial, como as tradições que lhe estão associadas”.
De resto, o trabalho deste professor do ensino superior não se resume à recolha e preservação das variedades de maçãs. Em cada saída de campo, Raúl Rodrigues faz contactos com as populações, para saber mais sobre as variedades, tanto ao nível do comportamento agronómico como ao nível das tradições que envolve. Várias destas variedades têm associadas tradições rurais, algumas das quais ainda se mantêm. A mais famosa é, provavelmente, a da maçã Porta-da-loja que, no Baixo Minho – em especial na vasta área que, na Idade Média, era dominada pelo mosteiro de Tibães, em Braga – era comida na noite de consoada. A maçã era assada no borralho, ou no forno, e servida em malga, regada com vinho verde tinto e polvilhada com açúcar.
Outra tradição associada a esta variedade (essa já perdida) consistia em oferecer maçãs ao pároco da freguesia, por altura da Páscoa. A Porta-da-loja é colhida no Outono, mas mantinha-se fresca até à Primavera. “É uma tradição que atesta a elevada capacidade de conservação desta variedade sem recurso a câmaras frigoríficas”, sublinha o professor da Escola Superior Agrária de Ponte de Lima.
O passo seguinte do trabalho de Raúl Rodrigues à volta das maçãs do Minho começa agora a ser dado. A ESAPL está a fazer a caracterização genético-molecular das variedades, recorrendo a marcadores moleculares. Este processo permite estudar o genoma de cada macieira e detectar as diferenças existentes ao nível do DNA. Além disso, os resultados destes testes vão traduzir-se num conhecimento mais rigoroso da genética das variedades e do nível de parentesco entre elas.
Esta fase do estudo permite ainda fazer inferências sobre as relações entre o genótipo e o fenótipo das variedades, o que, em última análise, “permite aumentar a eficiência dos programas de melhoramento”, outro passo determinante para tornar mais atractiva a reintrodução da exploração comercial destas variedades, explica Raúl Rodrigues.
Outros frutos
Apesar das dificuldades com que se depara a iniciativa – a instalação e manutenção da colecção é dispendiosa e a falta de recursos, financeiros e humanos, é frequente, lamenta Raúl Rodrigues -, o professor da ESAPL já definiu a próxima fase desta missão auto-atribuída de resgate do património vegetal da região. O trabalho iniciado com as macieiras vai ser estendido a variedades regionais de outros frutos. Nos terrenos da Escola Superior Agrária, em Ponte de Lima, já existem cerca de uma dezena de exemplares de pêras, com destaque para a Pêra-de-Codorno, historicamente muito abundante na região de Basto. Também os citrinos vão merecer uma atenção especial, com recolha e caracterização de espécies como o Cidrão – uma espécie de limão de aparência mais tosca, usado para compota e bolos, que foi muito comum na região nos séculos XVII e XVIII – e como as laranjas de Amares e do Ermelo, no concelho de Arcos de Valdevez.