“Esta crise é pior que a guerra. A guerra sabíamos que ia acabar”
Na clínica solidária de Atenas há gregos envergonhados e zangados. Alguns conseguem ajuda, outros não, porque estar doente na Grécia hoje é estar-se “condenado”.
Lá fora, na fachada de um edifício normal no meio das ruas com nomes de filósofos e dramaturgos, de Sócrates a Aristófanes, apenas um autocolante vermelho na campainha do terceiro andar indica que ali funciona a clínica.
A sala começa a encher pelas 13h e pouco; às 14h começa a distribuição de medicamentos. A farmácia, uma sala com prateleiras e as caixas de medicamentos bem arrumadas, tem muita coisa, a maioria remédios que sobraram de pessoas que os doaram – ou porque familiares morreram, ou porque não precisaram de todo o tratamento. Mas quem aqui vem, vem sem certezas: pode haver o que precisa, ou não.
Constantino Kokossi, reformado do Ministério dos Negócios Estrangeiros (todos os que trabalham aqui são voluntários), pega nas receitas e orienta a sucessão de pessoas. Dali a pouco a sala está cheia, cheia. Não vão sair daqui só medicamentos: uma família de sírios que vem buscar leite em pó para um bebé acaba por levar também um brinquedo, e entre discussão sobre o tipo de leite e instruções sobre como montar o brinquedo já há muita gente a rir.
Aqui passam pessoas que não têm seguro de saúde ou segurança social - na Grécia há um sistema misto entre o serviço de saúde público e seguros privados (normalmente pagos pelo empregador), quem está desempregado deixa de ter serviço nacional de saúde após três meses (com um taxa de desemprego de 25% e de desemprego jovem de 50%, isso é um problema). Vêm para consultas ou para buscar medicamentos. Às vezes é possível que a policlínica ajude – há até um consultório de dentista. Há médicos especialistas que recebem algumas pessoas por indicação da policlínica nos seus consultórios. Mas demasiadas vezes não é possível fazer o que precisam. Cirurgias, não é possível. Exames de laboratório, também não.
Ainda tentam “jogar” com as regras, que as pessoas entrem no hospital no dia da urgência (cada hospital tem um dia para emergências). “Mas vem o contabilista do hospital e pergunta: tem seguro? Então não pode ser operado.” Constantino diz que há casos de pessoas que iam começar a ser operadas mas já na sala de operação o responsável pelas contas do hospital vem decretar que não se pode operar. Em casos de acidentes graves, mal a pessoa acorda é-lhe perguntado pelo seguro. “Ou perguntam aos familiares, Não tem seguro? Mas se calhar tem algo de valor, uma casa, por exemplo.”
“É a tragédia grega”, comenta Constantino. Casos complicados como cancro, mesmo que haja por vezes medicamentos de pessoas que morreram, não vão ser tratados. “Somos testemunhas, mas não podemos fazer nada”, diz. “Essas pessoas estão condenadas.”
A situação da saúde na Grécia tornou-se tão precária que às vezes as pessoas chegam aqui enviadas pelos próprios hospitais, conta Constantino. Há doenças que já praticamente não existiam que estão a ressurgir com força. Pneumonia, varíola. Há demasiadas crianças que não são vacinadas.
Um raro caso de sucesso
Apesar de tudo a clínica, e outras semelhantes geridas por organizações como os Médicos do Mundo ou Médicos Sem Fronteiras, vai conseguindo ajudar. Só nesta clínica foram seguidas 6900 pessoas, “sem discriminar entre gregos e estrangeiros, entre quem tem papéis ou quem não tem”, sublinha Constantino. Com a crise surgiram vários projectos para tentar minorar as dificuldades, como o “movimento da batata”, que tentou cortar os intermediários na venda de produtos agrícolas, mas a maioria falhou. As clínicas são um raro caso de sucesso.
Para Constantino, esta é “uma crise social sem precedentes”. Já nem a compara à II Guerra e à ocupação nazi. “A guerra todos sabiam que ia acabar. O que estamos a viver é uma crise social que não sabemos quanto tempo vai durar.”
Constantino não esconde a sua preferência – quer que nas eleições de domingo vença o Syriza, o partido de esquerda que defende a renegociação da dívida e a reversão de medidas de austeridade.
O partido está ligado a esta clínica através de uma plataforma chamada Solidarity 4 all (solidariedade para todos), que junta as verbas de 20% do salário de todos os deputados do Syriza, depois distribuídas por projectos sociais. Uma parte vem para esta clínica – para material que seja necessário, sublinha Constantino. Mas não é só por isso. “Espero que uma parte do programa deles para a saúde possa ser aplicado. Que haja o direito a cuidados básicos, pelo menos os básicos, para todos.”
Aqui vêm as pessoas que não têm isto.
Ninguém quer dar o apelido. Katerina, 38 anos, veio tratar um problema de dentes. Depois de trabalhar cinco anos num restaurante de fast-food, está há dois anos desempregada. O marido recebe 750 euros de salário (“mas só de renda pagamos 300”), e tem um filho. Conta com a ajuda da mãe e da sogra, ambas reformadas. Katerina sempre votou no partido Nova Democracia, do primeiro-ministro Antonis Samaras. Desta vez, vai mudar. Pede o bloco de apontamentos para escrever o nome do partido: “Syriza”. Não quer que se saiba. Mas acha que seria “muito melhor” se o partido ganhasse. “Mais trabalho. Precisamos de trabalho.”
O dentista que a tratou não vota: “Vai contra as minhas convicções porque o problema está no sistema”, diz Giorgos, 25 anos, que vive com os pais e vai tendo trabalhos ocasionais em cafés, ou a distribuir panfletos (e ele próprio sem cobertura de saúde, nem seguro nem do sistema público). “Estamos de tal modo mal que o Syriza pode aliviar alguma coisa”, diz, embora não concorde com o partido. “E a maioria das pessoas também não vão votar porque concordem. As pessoas querem só que a sua vida mude um bocadinho para melhor.”
“Muitos dentistas foram para o estrangeiro porque é mais fácil encontrar emprego. Eu faço parte dos que decidiram ficar e tentar fazer o que conseguirmos aqui.” A sua motivação para estar na clínica é não só ajudar mas também não perder a ligação à profissão que escolheu, e que espera um dia vir a exercer.
Sem forças para "mudanças"
Outra Katerina, mais velha, olha à volta quando confessa o que vai votar: “Nova Democracia”, para acrescentar: “devo ser a única aqui”. Katerina trabalhou 35 anos na Alfândega e reformou-se há um ano. “Ainda não recebi um cêntimo. Dizem-me que ainda estão a processar as reformas de 2012”, conta.
“Não tenho especial orgulho em estar aqui”, desabafa. “Mas tem de ser.” Katerina vive com a mãe de 81 anos e com a filha de 37, professora, que está desempregada. Três gerações de mulheres a viver com a reforma da mais velha. Por isso está aqui, vem buscar os medicamentos para epilepsia que a mãe tem de tomar.
Mas não culpa o Governo. “Samaras fez algumas coisas. Não quero que todos os sacrifícios que fizemos tenham sido em vão. Não consigo pensar em fazer mudanças, não tenho força. Tenho medo – não quero voltar à dracma”, diz, a testa franzida sob os caracóis brancos.
Vendo que há uma pessoa com um bloco a escrever o que algumas pessoas dizem, um homem imponente põe o dedo no ar e diz que quer dar uma “curta entrevista”: na verdade vai ser uma declaração sem direito a perguntas. “Escreva que os políticos gregos traíram o país e venderam-no para ganhar comissões e nós é que estamos a pagar. Somos orgulhosos e nunca vamos perdoar os seus erros e o colapso da economia grega. Diga que quem disse isto foi um economista anónimo.”