Guterres não é imbatível (ou a “política de embalar”)
Que Presidente queremos para a entrada na década de 20 do século XXI? Mais do mesmo com os protagonistas inevitáveis dos últimos quarenta anos?
O principal axioma que foi gizado neste clima pardo e turvo de antecâmara das eleições presidenciais é o de que António Guterres, o putativo trunfo presidencial do Partido Socialista, é um candidato imbatível. E que, por conseguinte, qualquer outro candidato, proveniente de outro sector do espectro político, está condenado a perder as eleições – se ele vier efectivamente, tarde e a más horas, a confirmar-se como o concorrente da esquerda. Trata-se, porém, de uma verdade simplista e superficial, que pode ser útil ao PS, à esquerda em geral e quiçá também ao jogo de sombras chinesas de escolha do candidato do centro-direita. Mas há uma coisa que deve ser dita e escrita, com todas as letras e sem qualquer reserva ou hesitação: ao contrário do que têm procurado convencer-nos, Guterres não é, nem de longe nem de perto, imbatível. E é isto que muitos portugueses de centro, de direita e até da esquerda moderada e realista têm de interiorizar: Guterres não é imbatível. É perfeitamente possível bater António Guterres na eleição presidencial. Eis o que o PSD, o CDS e largas franjas de independentes moderadas, realistas e convictas da necessidade de reforma política devem, desde já, assumir. Guterres não é imbatível. Há muitas e boas razões para pensar assim e para acreditar num candidato e num projecto presidencial vencedor.
2. Em primeiro lugar, razões tácticas e aritméticas puras, de que, por motivos ignotos e misteriosos, ninguém fala ou tem falado. A que título e com que fundamento, alguém julga que Guterres será o único candidato do lado esquerdo do espectro político? Acaso o PCP se absterá, pela primeira vez, de apresentar um candidato? Será crível que ele desista, logo na primeira volta, a favor de um perfil que exige “sais de frutos” como o de Guterres? E o Bloco de Esquerda e as suas dissidências e refracções (Livre, Plataforma Manifesto, Juntos Podemos e quejandos) irão apoiar Guterres, o “bom católico” e supostamente o socialista mais “à direita” de todos? E não haverá um ou mais independentes, com um discurso popular e populista, anti-políticos e anti-corrupção, mas também social, de esquerda e humanista, capaz de fraccionar o eleitorado socialista? E não terão todos eles condições para arregimentar votos nas franjas da esquerda?
3. Em segundo lugar, o historial de Guterres – que vai do Guterres do sótão ao Guterres do pântano – não é isento de fragilidades e de pontos fracos. Na verdade, apesar da consabida bonomia, o Guterres do sótão está cheio de momentos “macbethianos”, vindos dos confins do ex-secretariado, mas depois canalizados contra Sampaio e o seu círculo, em que a luta crua pelo poder partidário, a intriga e a conspiração avultam. A que sucede o Guterres palavroso e perifrástico dos primeiros tempos da governação, em que o mote de ordem é agradar a todos e, sorrindo, dizer “sim” ao maior número. O que, com o passar dos anos, conduz Guterres aos umbrais do impasse e da estagnação e fazem do antigo Macbeth um verdadeiro e genuíno Hamlet. Após uma ascensão impetuosa e um exercício afável do poder, conhece os mais dramáticos e arrastados momentos “hamletianos”. Alguém que, em vez de ponderar e decidir, hesita, tergiversa e duvida, para finalmente desistir. E desiste, anunciando, urbi et orbi, a iminência do pântano. Desiste, sai de cena e deixa o país numa situação especialmente grave. É verdade que sai com grande dignidade pessoal, dignidade que soube preservar e até valorizar em todo o tempo que entretanto decorreu. Como é também verdade que pôs o seu prestígio internacional ao serviço de uma causa humanitária de enorme responsabilidade. Activos esses que são importantes, mas que estão longe de assegurar um qualquer estado de imbatibilidade.
4. Em terceiro lugar, o perfil e o programa político de Guterres. O exercício das responsabilidades governativas nos anos de 1995-2002 anuncia um perfil e denuncia um programa. O perfil aponta para uma atitude demasiado laxista, que procura agradar em tudo a todos, extenuantemente perseguidora de consensos, mas dos consensos que matam. Se quando era Primeiro-Ministro já parecia um Presidente da República parlamentar, que fará enquanto Presidente? Será um monarca constitucional, que corta-fitas, inaugura e faz apelos ao bom senso? É disso que Portugal precisa em 2016, depois de uma terrível crise económico-financeira e em nítido esgotamento ou exaustão político-institucional? E que dizer do programa político? Vamos regressar a uma presidência activamente conivente com o despesismo que nos deixou na penúria e na bancarrota? Quem iniciou a grande temporada despesista e saiu do Governo, confessando que já não tinha forças nem têmpera para lhe pôr cobro? O que queremos para a presidência? De novo, a “política de embalar” que, nos anos do guterrismo, deixou o Estado no letargo e empurrou a sociedade para a letargia?
5. Que Presidente queremos para a entrada na década de 20 do século XXI? Mais do mesmo com os protagonistas inevitáveis dos últimos quarenta anos? Não será altura de assumir a fadiga do regime e confiar num candidato com uma agenda reformista e activa, capaz de mobilizar a reforma político-institucional a partir da presidência? Se não nos deixarmos embalar, Guterres não será imbatível.