A Magna Carta como (pre)texto da superioridade britânica
Comemorar a Magna Carta não é atribuir-lhe talentos, dons e carismas que ela não tem, não teve, nem nunca poderia ter tido. Basta evocar o seu verdadeiro sentido e lugar, para que brilhe.
Seja na sua versão original, bem mais longa, seja nas versões de Henrique III (1216 e 1225) ou, talvez mais importante, na confirmação de Eduardo I (1297), cura-se de um marco de referência. Em todo o caso, não corresponde a uma excepção inglesa, britânica ou anglo-saxónica; antes se insere numa tradição espalhada por toda a Europa da Idade Média, como bem prova a Bula Áurea de André II da Hungria (1222) ou até, no nosso espaço político e cultural de vizinhança, as célebres Sete Partidas de Afonso X (1256-1265). A Magna Carta, nos seus dizeres e nas suas provisões, na variedade dos seus sujeitos e na assimetria das suas preocupações, não podia ser mais representativa dos equilíbrios e tensões políticas do mundo medievo. Não é – ao invés do que muitos imaginam e até alardeiam – uma declaração de direitos à maneira moderna ou contemporânea, pautada pelo reconhecimento da universalidade dos direitos e liberdades nela assinalados. É essencialmente um pacto no qual os diferentes detentores do poder reduzem a escrito o catálogo recíproco de liberdades e de vínculos, de imunidades e de deveres, de direitos e obrigações. Sem dúvida que o reconhecimento formal desse complexo de prerrogativas e vinculações tem uma finalidade e um resultado de limitação do poder, de recusa da dominância de qualquer poder geral ou hegemónico. Muitos vêem aqui fundamentalmente o intuito de limitar o poder real, o poder do Rei; mas importa sublinhar que, nesta fase das monarquias europeias, o poder do Rei era já de si muito limitado e de afirmação relativamente intermitente. Por isso, Hegel pode qualificar o modelo político e constitucional da Europa medieval como “poliarquia”, pondo-o nos antípodas da “monarquia”. A vigência destes pactos e de documentos afins evidencia a correlação de forças políticas efectivamente subsistente no mundo político medieval e traduz a diversidade e a heterogeneidade de centros políticos em constante disputa e transacção.
2. A Magna Carta é, portanto, um contrato tipicamente medieval, uma expressão da negociação e barganha permanentes, de uma sociedade política na qual não há um soberano, na qual não há soberania. Trata-se de uma sociedade em que o poder político está originariamente fragmentado por várias sedes, entidades e personalidades. O poder não reside no Estado (que, pura e simplesmente, não existe) e não reside no Rei, que é apenas mais uma força política entre outras. Os senhores feudais, a nobreza de recorte vário, os bispos e o clero, as ordens religiosas e militares, as cidades e as comunas livres, as guildas e as hansas, as abadias, os mosteiros e as universidades são entidades que partilham e quinhoam o poder. Estas cartas medievais não são mais do que o reconhecimento a grupos corporativos do seu exacto status político e social, do seu status constitucional. São, sem dúvida, um instrumento de consignação de liberdade – ou, mais propriamente, de liberdades (bastas vezes, muito concretas e específicas) –, mas de liberdade no quadro daquela ordem social complexa e variável em que não há poderes gerais nem dominantes. Justamente porque os direitos e as garantias são atribuídos a entidades com um concreto status, vertidas numa certa posição político-social (ou até corporativa), estes pactos constitucionais medievais desconhecem o imperativo da igualdade e não estendem o catálogo de direitos e privilégios a todos e a cada um dos cidadãos. A sua redução a escrito e a sua efectiva vigência e observância atestam uma verdade muito esquecida e ocultada: a de que a Idade Média foi uma idade política de liberdade e de liberdades. Não foi, decerto, uma era de isonomia ou de igualdade, mas foi seguramente um tempo de liberdades e de liberdade.
3. Há, porém, uma corrente poderosa da nossa intelectualidade que quer ver na Magna Carta uma prova da excepcionalidade britânica e anglo-saxónica. E com tanta e tão pronta veneração acaba até por transformar a tão celebrada “excepcionalidade” numa indisfarçável “superioridade”. Ora, importa dizer que a história constitucional e política inglesa desmente algumas das ideias feitas a propósito do lugar da Magna Carta e do seu pioneirismo na afirmação dos direitos fundamentais ou dos direitos humanos. Por um lado, porque até ao século XVII, a Inglaterra viveu um processo de centralização do poder real (com a consequente perda política dos “poderes medievais”) paralelo ao que se passava na Europa continental. Basta pensar em Henrique VII, Henrique VII e Isabel I. Por outro lado, porque a luta do século XVII inglês, em que pontificam Tiago I e Carlos I, e que conduzirá à República de Cromwell e depois à revolução inglesa, vem a ser basicamente uma luta entre a “conservação” do modelo medieval (ainda que “sofisticado”) e a instauração da modernidade absolutista (e de um verdadeiro Estado). É sabido que foram as forças conservadoras, ciosas da ordem medieval e dos seus arranjos, que ganharam esta luta. E que mesmo documentos importantes do direito constitucional inglês como a Petition of Rights (1628) ou a Bill of Rights (1689) ainda obedecem à lógica corporativa e político-social dos tempos medievos. Mais uma vez, estamos perante o reconhecimento de relevantes esferas de liberdade, mas dentro de um quadro que está longe da assunção da universalidade e da igualdade nos direitos e garantias. É também, por isso, que aqui se tem dito, uma e outra vez, que o modelo britânico preza acima de tudo a liberdade, mas parece ter reservas quanto à igualdade. Comemorar a Magna Carta não é atribuir-lhe talentos, dons e carismas que ela não tem, não teve, nem nunca poderia ter tido. Basta evocar o seu verdadeiro sentido e lugar, para que brilhe.