Quando o soberano dita a excepção

A situação jurídica em que permanece o cidadão José Sócrates é verdadeiramente uma situação processual-jurídica-penal de excepção.

Com isso mais não se pretende acautelar o egoísmo duma tranquilidade de consciência, conseguida pela sistemática exclusão dos problemas. Com este arremedo de espírito democrático da separação de poderes, tem-se detido sem discussão instigadora um cidadão que foi primeiro-ministro de Portugal e manufacturou-se um manto de silêncio neste confronto infame e desigual de um cidadão remetido ao sequestro recuperador de uma acção da justiça instrumentalizada e braço de justiceiros. Contra este hodierno processo da banalização do mal, há que levantar a voz, em nome da genuína defesa dos direitos e liberdades do cidadão, tão massacradas neste insólito episódio persecutório e no cumprimento da advertência aristotélica do cumprimento de todos os deveres e do exercício de todos os direitos.

Quando em 7 de julho de 2008, era eu presidente da Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados, se realizou, sob seu patrocínio, a conferência “Guantanamo, nunca mais”, sobre os horrores dessa prisão, um dos então oradores, Prof. Luís Moita, introduziu a sua dissertação com este pensamento de Carl Schmitt, autor na marginalidade do pensamento nazi: o soberano dita a excepção.  

Esta citação traz à memória e à actualidade o pensamento e a teoria política deste controverso e conhecido jurista e filósofo nazi, que logo no início da sua obra Politishe Theologie exprime um condensado pensamento que marca toda a sua obra: “soberano é aquele que decide do estado de excepção.” As normas só podem ser aplicadas a situações normais; nas situações de excepção, a decisão cabe àquele que tem o poder para agir nesse momento: o soberano.

A extrapolação actual e adequada desta prática política às peripécias e às contradições - mais do que isso - aos sobressaltos processuais-penais a que tem estado sujeito a itinerância do processo de detenção do cidadão José Sócrates, são motivo de forte inquietação da consciência jurídica de uma comunidade que se reivindica do respeito e da defesa de uma legalidade democrática do estado de direito. É precisamente a suspensão deste e das correlativas garantias dos direitos e liberdades, que urge no caso clarificar e tornar acessíveis ao comum dos cidadãos que se interrogam sobre o que se passa.

A detenção e posterior prisão preventiva de José Sócrates só foi possível na base de uma organização judiciária que conferiu à investigação a existência de um único juiz, a quem, para vergonha nossa, e da dignidade da própria magistratura, “vox populi” cognomina de “super juiz” e “juiz de mão de ferro.”

A situação jurídica em que permanece o cidadão José Sócrates é verdadeiramente uma situação processual-jurídica-penal de excepção, determinada por alguém que suspendeu as garantias normais de um estatuto de legalidade estrita e as substituiu por valores pessoais de flutuação livre. Outra leitura não pode ter o facto do carácter excepcional da prisão preventiva que foi decretada, o garrote ao direito inalienável de falar, o constrangimento do poder de recorrer em pleno com a recusa do conhecimento transparente da realidade investigada, tudo sob o pano de fundo de um segredo de justiça escancarado na rua e organizado no pelourinho de um justicialismo sedento da fúria açulada por um ambiente supressor de elementares direitos de personalidade, onde se prende para investigar e não se investiga para prender.

A existência de um juiz soberano e único, capaz de suspender, de facto, as garantias, dá lugar a que a aniquilação do direito se confunda coevamente com a sua própria criação pessoal. As consequências assim desencadeadas repercutem-se como num mecanismo de rodas dentadas. A coercividade do direito deste modo assumida faz tábua rasa dos mais elementares direitos de defesa e descarrega sobre as ossadas do esqueleto do detido a infâmia do massacre.

Um poder de decidir que faz da ordem jurídica uma decisão libertadora de todos os constrangimentos e conduz a um procedimento de quase prisão automática, acaba por tornar concreto o que em Maquiavel é quase uma figura ideal. Dogmatizando uma só verdade – a relatividade de todas as outras este poder cria o húmus ideal para fertilizar a “vontade de domínio” de que falava Nietzsche.

Este poder ignora de igual modo a advertência de Montesquieu segundo a qual “mesmo a virtude tem necessidade de limites”. A imperativa legalidade jurídico-política do caso nega a possibilidade da legitimação daquilo que seja baseado apenas na vontade política do soberano e no nocturno pensamento de triste memória “ex captivitate salus” (o cativeiro liberta). Com o soberano a suspender o direito e as suas garantias, percebe-se com isso que o direito possui na verdade uma fundamentação política ao invés de uma fundamentação normativa e que na situação concreta o juiz das liberdades, como em geral é costume chamar o juiz da instrução, nega a definição de que ele deve viver todas as paixões e não experimentar nenhuma.  

A adesão a uma perspectiva autoritária de pensamento jurídico pelo juiz de instrução do cidadão José Sócrates deixa de poder ser pensada como um acaso, para se transformar numa possibilidade inscrita no coração mesmo do seu pensamento. Ela pode não decorrer de uma necessidade interna da sua ideologia, mas enquanto a organização judiciária vigente lhe der os poderes de majestade soberana de instrução exclusiva, nada lhe obstaculiza o caminho da sua capacidade de provocar uma reflexão sobre a natureza das suas referências legais em colapso, ressuscitando-as num universo patológico de prosaica vontade de dominação política.

Carl Schmitt, arguto jurista e filósofo do nazismo, analisou bem o problema da suspensão do direito em situações de anormalidade e foi o primeiro na sua teorização a chamar a atenção para o momento em que a estrutura do poder se revela: a decisão sobre a excepção que suspende o direito. Neste contexto, no qual se perderam as garantias representadas pela lei, a decisão erigida em princípio da vida política e encarnada num actor concreto, seja ele, um homem, um juiz, um partido, é a porta aberta para uma aventura à qual continuamos a estar expostos, mas que já mostrou a sua face terrível no curso do último século.

Definitivamente, ao invés do que se apregoa, o que é da política é da justiça, o que é da justiça é da política. A lei deixa de ser vista de acordo com a definição aristotélica, como “a inteligência liberta de toda a paixão”. A pouco e pouco as normas tornam-se compromissos inócuos entre as forças em presença, as instituições, despojadas de todo o sentido original, simples arenas de luta. A paralisia do direito e a negação do dinamismo dos seus conceitos em direcção ao “infinito devir do Direito no sentido da Justiça”, que emerge na situação actual da sociedade portuguesa, é uma situação preocupante e de consequências imprevisíveis.

Aí, a vontade política é uma “voluntas ambolatoria”, isto é, o arbítrio, segregado por um poder que no seu estado bruto, na sua origem, tem uma força informe e não é senão força. O soberano, senhor da “plenitudo potestatis” decidindo “de legisbus”, não necessita de outro título para mandar para além da sua própria autoridade. O fundamento da lei é apenas a vontade de quem a dita.

Sólon, que se negou a permanecer em Atenas, uma vez concluída a sua obra advertiu os seus compatriotas do erro que cometeram ao não entender a natureza do poder excepcional do qual ele havia disposto: “depus as minhas armas diante do centro dos estrategas, e disse que era mais sábio do que os que não viam que Pisístrato aspirava à tirania, e era mais corajoso do que os que não ousavam se opor a ele”.

Advogado

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