Requisição civil e “serviços mínimos”
O presente escrito precisa de duas advertências preliminares. Quem o assina considera a presente greve um acto de violência colectiva extrema, e tem a maior antipatia pelas paralisações de trabalho assentes naquilo que um famoso sindicalista italiano chamava “ o massacre dos utentes”. A segunda nota é que se trata de matéria de opinião, e a nossa foi já diferente da que agora se sustenta. Mudar convictamente de opinião é um grande prazer.
O diploma legal sobre a requisição civil (de pessoas, bens, empresas) é um decreto-lei publicado em 1974, antes, portanto, da consagração constitucional do direito de greve. É um diploma pré-constitucional e, naturalmente, infra-constitucional. Consagra um recurso utilizável em todo o tipo de emergências nacionais, regionais ou locais: catástrofes naturais, ameaças externas, desastres de extrema gravidade, e também paralisações colectivas de trabalho, uma vez que tais ocorrências possam afectar “actividades fundamentais, cuja paralisação momentânea ou contínua acarretaria perturbações graves da vida social, económica ou até política” – assim reza o preâmbulo do referido decreto-lei.
No seu articulado, torna-se claro que o objectivo do “conjunto de medidas” compreendido na requisição civil é “assegurar o regular funcionamento de serviços essenciais de interesse público ou de sectores vitais da economia nacional”. Para isso, colocam-se pessoas, bens, organizações e sistemas sob a autoridade directa do Governo, sujeitas à disciplina dos servidores do Estado, ainda que possam funcionar mecanismos de delegação de competências nas estruturas hierárquicas mais próximas do terreno.
A resolução do Conselho de Ministros que lançou a requisição na TAP é, declaradamente, uma decisão destinada a garantir o regular funcionamento da empresa e, portanto, a normal prestação de serviços de transporte que ela assegura quotidianamente. Ela surgiu dias antes de, nos termos legais, um tribunal arbitral ter definido os serviços mínimos que têm que ser assegurados nesta greve.
Houve quem dissesse que uma coisa não prejudica a outra: que a requisição vale da mesma maneira, e que a decisão arbitral não a afecta. Mas não é, de todo, assim.
O regime de requisição civil não pode furtar-se ao confronto com a Constituição que surgiu dois anos depois. É evidente que, ressalvadas as situações de reconhecimento formal do estado de excepção, o exercício das faculdades que o regime legal de 1974 ofereceu ao Governo tinha e tem como limite o respeito pelos direitos fundamentais, na exacta configuração que deles fornece a Constituição.
Ora a colisão do direito de greve com outros direitos fundamentais e interesses sociais relevantes tem uma solução parametrizada pela Lei fundamental. Trata-se da imposição, aos trabalhadores e aos sindicatos, da obrigação de prestarem “serviços mínimos” que sejam “indispensáveis à satisfação de necessidades sociais impreteríveis”. É exclusivamente essa a medida da restrição do exercício do direito de greve – como dissemos, fora das hipóteses de estado de excepção formalmente declarado -- que se contém nos limites do regime constitucional.
Perguntar-se-á, então, para que serve a requisição civil em caso de greve. Não serve apenas – como por vezes se sustenta – para o caso de se verificar o incumprimento dos serviços mínimos, como, expressamente, se dispõe no Código do Trabalho. Serve também para o caso de ser razoavelmente previsível (por exemplo, através de declarações da liderança de uma greve) que os serviços mínimos não serão cumpridos – e, então, como meio de os fazer observar.
Assim, em caso de greve, requisição civil e serviços mínimos estão estreitamente ligados. É absolutamente infundada a suposição de que é possível, legalmente, manter a exigência de “normal funcionamento” de serviços ou empresas depois de definidos os serviços mínimos nos termos da lei. Tudo o que esteja para além do nível dos serviços mínimos é legalmente (constitucionalmente) insustentável como exigência da autoridade pública ao pessoal de uma empresa, fora do quadro do estado de excepção.
António Monteiro Fernandes, professor do Instituto Universitário de Lisboa - ISCTE