Martin Amis: “O homem não pode entender o holocausto, porque o holocausto não é humano”
O escritor Martin Amis volta a Auschwitz num romance que é uma espécie de comédia/sátira do Holocausto. The Zone of Interest é sobre o quotidiano de uma vila habitada pelos familiares dos SS onde se exterminam judeus. Que linguagem para falar do absurdo? Ele explica numa conversa intimista com leitores sobre o romance que chega a Portugal na Primavera.
É o princípio de uma conversa sobre o seu mais recente romance, The Zone of Interest (Knopf), o seu 14º romance, uma espécie de comédia sobre o Holocausto que divide opiniões especializadas. Há quem o considere uma obra-prima, como o norte-americano Richard Ford, ou a crítica inglesa que o considerou o melhor livro de Amis em 25 anos, desde London Fields (1989); e também há quem, como Joyce Carol Oates nas páginas da New Yorker, o tenha achado superficial no modo como trata questões tão profundas como a desse “porquê”. A discussão sobre The Zone of Interest mantém-se viva meses antes do romance ser editado em Portugal, na próxima primavera, pela Quetzal.
É um Martin Amis calmo, menos sarcástico do que muitas vezes o vemos, o que está a falar na McNally Jackson, a livraria no Soho que quer ser referência entre as livrarias de Nova Iorque. Passaram mais de três meses sobre a publicação do romance que foi rejeitado pelas editoras tradicionais de Martin Amis na Alemanha e França, a Carl Hansen e a Gallimard. O público que ali está sabe da polémica, muitos já leram o livro e têm questões a pôr ao escritor. “A decisão de escrever ficção, seja sobre que tema for, é sempre complicada. Norman Mailer disse que quanto mais se escrevia mais se ia sentindo estranho. Acho que é isso, essa estranheza crescente a partir de algo”, afirma Martin Amis quando o anfitrião da conversa, o também escritor e músico Glenn Kurtz, lhe pergunta sobre o que o levou a voltar àquela zona de desconforto, ou como Amis prefere chamar-lhe, a uma zona de “incredulidade” que confere um carácter de excepção ao que foi o III Reich.
Mas é um argumento já demasiado racional para explicar o impulso que leva a que um escritor se lance à escrita. “Há quem diga que é um frisson, mas talvez seja mais acertado dizer que é uma dádiva, no sentido de dom. Algo que nos é dado e que conseguimos agarrar no meio de tantas distracções. Neste caso, ‘deram-me’ uma imagem e foi daí que me veio o assunto”, conta num tom pausado, sotaque britânico inalterado pelos quatro anos a viver em Brooklyn, Nova Iorque, depois de ter estado quase dois no Uruguai, país da segunda mulher, Isabel Fonseca, e sem perder contacto com Londres, onde nasceu em Agosto de 1949. E essa imagem original era: “Um homem apaixonava-se por uma mulher na primeira vez que a viu”, revela. “E era muito clara para mim. É com ela que começo o romance”, continua sobre um livro onde Hitler nunca é citado, o seu nome nunca parece, mas o fantasma comanda a cena, logo a partir dessa primeira imagem.
O homem que se apaixona é um oficial nazi de segunda linha, Angelus (Golo) Thomsen, alguém que quer estar pouco comprometido com o regime, um não apoiante “como acontecia com cerca de 40 por cento da população alemã da época”, sublinha Amis, mas demasiado oportunista para revelar as suas dúvidas e deixar de cumprir ordens. Quanto à mulher, é casada com o comandante da chamada zone of interest, a área composta por um campo de trabalhos forçados e extermínio na vila de Auschwitz, com o bairro onde vivem os oficiais nazis e as suas famílias.
Não sabia se ia ser apenas um conto ou um romance longo. Diz que é quase sempre assim. Há uma ideia mas pouco mais acerca da sua concretização. No tal princípio, é só uma força que nos puxa para a frente”, continua, e cita Vladimir Nabokov, uma das suas grandes referências literárias, a par com Saul Bellow. “Ele costumava dizer sobre Lolita que a ideia para o romance lhe surgiu ao ler numa revista francesa um artigo sobre um chimpanzé que aprendeu a desenhar, mas que a única coisa que desenhava eram as barras da sua jaula. Alguém preso à sua jaula. E Lolita seria afinal isso”, refere-se numa associação ao relacionamento entre o professor Humbert Humbert e Dolores Haze, a rapariga de 12 anos por quem ele está sexualmente obcecado. “Ele molda-a como o carcereiro faz com o seu animal.”
Faz uma pausa. “Talvez isto dê para perceber que não há qualquer ligação entre The Times Arrow e este livro. Não sei explicar melhor. Talvez se tenha mantido a tal procura da razão, do tal porquê. Voltei a ler centenas de livros. Reli muitos. Voltei a ler The Holocaust (1986), de Martin Gilbert, numa edição diferente e quando comparei com a que edição que tinha lido vinte e tal anos antes, os meus sublinhados e anotações estavam nos mesmos sítios. A minha incredulidade estava intacta. O que me fez avançar foi uma entrevista que li de Primo Levi. Ele dizia que não era possível entender o Holocausto da perspectiva humana porque o Holocausto não era um projecto humano. Era algo que estava fora do homem. Simples, não é?: o homem não pode entender o Holocausto porque o Holocausto não é humano. Essa era a verdadeira questão”, conclui, “se ninguém sabia porque queria eu tentar saber?”
A amarra está solta, graças a Primo Levi, o escritor italiano, sobrevivente de Auschwitz-Birknau que escreveu as suas memórias em Se Isto É um Homem (1947). Martin Amis fala dele como de uma espécie de mentor deste livro. Sabia da impossibilidade de encontrar a razão, mas quis explorar a empatia, o homem na sua circunstância, no caso, a daqueles que viviam o dia-a-dia na vila de Auschwitz em 1942. “Os homens da SS que estavam em Auschwitz tinham as suas famílias com eles, as suas mulheres e os seus filhos. Como é que viviam ali? Eles viviam e tinham uma espécie de vida social, com cinemas, e teatros e cafés dançantes, bailes, cocktails. A história de amor à primeira vista neste cenário pouco convencional pareceu-me boa. E logo ali, nesse início, se percebe que não é uma espécie de cenário idílico. Portanto, se as coisas corressem bem na escrita, se não houvesse muitas hesitações, eu tinha ali uma espécie de multidão que me iria alimentando”, diz Amis, antes de falar dos seus narradores. Além de “Golo”, há Paul Doll, o comandante do campo e marido desprezado pela mulher por quem Golo se fixa sexualmente, e um judeu com o trabalho mais desprezível que um judeu pode ter num campo de extermínio: Szmul, o que ajuda a iludir os outros judeus, de que nada se irá passar de mal numa câmara de gás, “tudo em troca de uns cigarros e de adiar por uns dias a morte”, fala Amis, com outra interrogação. “O que leva alguém a fazer isto? Eles sabiam que iam morrer, que a morte não lhes era poupada em troco de colaboração. Eles também eram para abater. Porque não morrer então logo?”
A sátira da culpa
São narradores na primeira pessoa, o que lhe lançou outro desafio: o da verosimilhança. Entrar na cabeça de quem não entendia e reproduzir uma voz que não soasse dissonante. “Nunca me poderia, nem queria, colocar no lugar da vítima, sentia que não era a minha função. Quanto temos testemunhos como os de Levi para quê fazer isso na literatura? Mas conhecia de perto essa realidade. A minha sogra perdeu familiares nos campos de concentração, contavam-se histórias. Ela falava disso de modo muito sereno, mas ocorriam-me sempre coisas como uma velha neurótica à procura dos seus parentes. Não queria isso. Não queria o espectáculo da nemesis.
Havia contudo uma vítima, Szmul, mas escrever com a voz dele era ter outras angústias: a culpa, o saber do mal, a impiedade, a ambiguidade, a fraqueza. Nada havia nele de heróico. “O problema é sempre o da escolha da linguagem. Como falar do radical?”, interroga-se, fazendo uma ponte para o presente. “É uma questão que se mantém. Por exemplo, como escrever sobre o que se passa no Iraque, na Síria, em movimentos racistas? Como se ultrapassa essa ideologia? Como se fala de pessoas que estão preparadas para roubar, matar, torturar sem nenhuma razão, simplesmente porque isso os faz sentir poderosos? ‘John’, o homem que decapitou o jornalista James Foley, não está interessado no islamismo ou em Alá. Ele executa pessoas citando salmos, mas talvez o livro que melhor se aplique a ele seja o 'Islão para Totós'. É o tipo de pessoa que adora sentir os outros tremerem quando ele entra em cena.”
E é esse tipo de poder que Amis satiriza neste The Zone of Interest, as motivações dos homens em cenários extremos. George Steiner e outros como ele dizem que Auschwitz tem à entrada como que uma grande placa a dizer, ‘romancistas, afastem-se!’ A linguagem para isto é, de facto, um problema. É a noção de que a linguagem é pouco eficaz a falar de coisas únicas, como o Holocausto. Será? “Penso nos desprezíveis discursos do comandante, do médico a pedir àquela gente que chegava para morrer para que reportassem doenças, queria saber se eram diabéticos, alimentando a farsa do trabalho. Eles eram muito bons nesse jogo. E, como Szmul, havia judeus que ajudavam no jogo, que vigiavam as cremações. Que criaturas tristes e desprezíveis!”
Não se sente nas palavras de Martin Amis uma ponta da ironia que transporta para o livro. No livro a paródia terrível está montada. Mas naquele dia em Nova Iorque há gente na rua a manifestar-se contra o racismo. Entre os que o ouvem, há quem pergunte sobre como justifica que décadas depois continue a haver anti-semitismo na Europa. Amis responde que não é só na Europa, mas que a Europa devia ter aprendido mais, talvez. Faz uma pausa. “Todos os países lidam com a culpa em relação ao Holocausto. Isto passou-se na Europa, mas a conivência foi global. Foram precisos mais de 50 anos para chegarmos a uma abordagem mais realista desse tempo, dessa relação com o passado, de lidar com a culpa. Até os suíços se sentiram culpados por terem comprado ouro dos dentes dos judeus. Mesmo a América, quando na Conferência de Evian [1938] proibiu a imigração, em 1937 já Roosevelt fizera um discurso bastante anti-semita. Na Alemanha só agora os mais novos estão a fazer perguntas e querem saber e discutir o assunto. Isto é novo, é só da última geração. Ninguém estava capaz de falar disso por carregar essa culpa. Se olhar para as percentagens, a França é o segundo país mais anti-semita da Europa, com 37 por cento. A Grécia tem 69, a Grã-Bretanha oito por cento, os EUA nove por cento, o Canadá vinte por cento. O anti-semitismo na América é o mesmo de 1941 a 1944. No Iraque é de 93 por cento, na Arábia Saudita 89 por cento…”
Que retiramos disto? “Todos os escritores que vão para este tema, sejam romancistas, filósofos, teólogos, historiadores, não podem garantir que não se volte a repetir qualquer coisa assim, mas podem garantir que não se irá repetir pela mesma razão. Porque não houve razão. Porque escrevemos sobre isto? Talvez para alertar. Para ter a certeza de que não pode acontecer outra vez. Não pode.”