Doentes mentais são sobremedicados “para não chatearem os familiares”
“Mesmo as pessoas que são sujeitas a violência doméstica não podem sair de casa”, denuncia representante da Rede Nacional de Pessoas com Experiência de Doença Mental.
Pelo menos desde 2008 que é uma promessa política, criar residências para que pessoas com doença mental possam viver na comunidade, com o máximo de autonomia, ajustadas ao seu estado de saúde. O decreto-lei de 2010 prevê residências de treino de autonomia, residências autónomas de saúde mental, de apoio moderado e de apoio máximo.
“A lei está em águas de bacalhau, ficou bloqueada por falta de dinheiro”. À rede, um movimento cívico criado em 2005 para defender direitos civis e políticos de pessoas com experiência de doença mental, chegam as queixas. “As pessoas vivem em casa com os familiares, sujeitam-se às condições que os familiares lhes impõem”. Fala do caso de uma mulher cujo pai faz questão de dizer a toda a gente, incluindo a todos os vizinhos no prédio onde vive, que “tem em casa uma doente mental”. Ou de um utente, vítima de violência doméstica, que ligou para a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima a pedir ajuda. Foi aconselhado a sair de casa. “E ia para onde? As poucas residências que existem estão cheíssimas”. “Mesmo as pessoas que são sujeitas a violência doméstica não podem sair de casa” e “sem residências, não têm alternativa à vida mesquinha dentro de casa, sem projectos de vida”.
O objectivo é que as pessoas aprendam a viver por si próprias, a fazer a sua comida, a passar a ferro, limpar os seus quartos. Toda a vida da pessoa se transforma quando entra numa residência e ganha, com ajuda de técnicos, autonomia, explica Maria João Neves, que tem doença bipolar, e tem o privilégio de poder viver numa residência comunitária para pessoas com problemas de saúde mental, da Associação para o Estudo e Integração Psicossocial (AEIPS), em Lisboa.
Nos casos de violência de familiares coloca-se também a questão judicial, nota. A pessoa com doença mental em causa conta que o pai lhe deu "uma bofetada, uma tareia. E testemunhas, onde é que estão? Estavam lá a mãe e os irmãos. Alguém vai testemunhar uns contra os outros?”. Maria João Neves, que tem 48 anos e estudou Direito, diz que as pessoas não ganham nada em apresentar queixa.
Maria João Neves explica que “ir para um quarto alugado não é alternativa", porque os senhorios "mal sabem que as pessoas são doentes mentais põem-nos na rua". Quanto às casas, "nem lhes chegam porque custam 400 euros e estamos a falar de pessoas com uma reforma na ordem dos 280 euros.”
Diz que “a única esperança que têm é que encontrem um bom médico que os medique como deve ser sem os pôr dopados e a dormir”. E que encontrem um centro de recursos, que lhes dê projectos de vida, como a Associação para o Estudo e Integração Psicossocial (AEIPS), em Lisboa, que Maria João Neves, frequenta e onde esta rede nasceu. Há utentes que que conseguiram ir para a faculdade, fazer um estágio profissional remunerado. “O apoio domiciliário também está parado”.
“Não havendo residências, técnicos treinados em saúde mental nos centros de saúde, saídas nenhumas a nível de recursos de saúde nos cuidados primários, não havendo psicoterapias, o que é resta aos médicos? Sobremedicarem as pessoas para não andarem a chatear os familiares, para não andarem a chatear ninguém."
Em casa, muitos pais "não conseguem lidar com os seus filhos, não são técnicos, não é culpa de ninguém.” Também está previsto na legislação dos cuidados continuados que os cuidadores possam requerer curtas estadia dos seus familiares nestas residências para poderem descansarem. “As pessoas estão sobrecarregadas.Nós cansamos, qualquer pessoa precisa de férias."
A rede, que está representada na Comissão Consultiva para a Participação de Utentes e Cuidadores e no Conselho Nacional de Saúde Mental, reclama também que seja criado “um regime mais flexível que permita acumular pensões e benefícios [de invalidez por doença mental] com trabalhos pontuais com pequenos rendimentos”, como muitos reformado fazem, diz. Maria João Neves explica que quem tem uma reforma de invalidez, que é de 280 euros, está proibido de qualquer tipo de trabalho e de fazer cursos profissionais. Tão importante como a questão de rendimentos, “é a pessoa sentir-se útil, tentar recuperar o papel social que perdeu com a doença”.
Mas há uma nota positiva. Maria João Neves nota uma maior abertura das empresas, que aceitam cada vez mais pessoas com problemas de saúde mental para estágios remunerados, no âmbito do Instituto do Emprego e Formação Profissional. O problema é que a pessoa termina o estágio, “dão a classificação de muito bom mas não contratam. A desculpa é muitas vezes não terem instalações físicas para o ter. A crise afectou toda a gente, mas para pessoas com experiência de doença mental é duplamente difícil.” Maria João Neves lembra que está provado cientificamente que mais do que campanhas de sensibilização nos media ou nas escolas, “o que mais retira o estigma é a integração das pessoas no mercado normal de trabalho, nos locais normais de estudo. É com o contacto, mano a mano, que se percebe que não somos perigosos, que somos pessoas como quaisquer outras".
Técnicos não devem responder por actos de utentes
A legislação que criou no papel as unidades de cuidados continuados integrados de saúde mental prevê num dos seus artigos que o pessoal que trabalha nestas unidades responda civilmente por quaisquer danos causados pelas pessoas com problemas de saúde mental a seu cargo.
“Este artigo precisa de ser erradicado”, defende Maria João Neves, em nome da Rede Nacional de Pessoas com Experiência de Doença Mental. “Se os técnicos fizerem uma saída ao exterior com os utentes e um deles partir um prato quem paga é o técnico. Quem é o técnico que arrisca?”. O que esta regra vai provocar, defende, é que as pessoas com doença mental sejam cada vez mais interditadas ou inabilitadas, para que a responsabilidade dos seus actos não recaia nos técnicos e passe para o seu curador ou tutor, que muitas vezes são os familiares.
A interdição consiste na limitação do exercício de direitos de pessoas que demonstrem incapacidade de poder governar a sua pessoa e os seus bens, enquanto que a inabilitação traduz-se apenas na incapacidade da pessoa reger o seu património. Uma pessoa interditada é equiparada a um menor, explica o Instituto Nacional para a Reabilitação.
Ao serem dadas como interditadas ou inabilitadas pelos tribunais, "as pessoas ficam privadas de direitos como votar ou até de casar", nota a responsável. “Queremos ser pessoas com plena capacidade jurídica. Queremos ser responsáveis pelos nossos actos”, sublinha. “O artigo é contrário à filosofia da legislação”, que pretende promover a autonomia dos utentes.