O que há no fundo do nosso frigorífico

É nas nossas casas que se dá 42% do total do desperdício alimentar. Compramos produtos que depois passam directamente do frigorífico para o caixote do lixo. Ou seja, deitamos dinheiro fora. Porque é que isto acontece?

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Lembro-me de, antes de iniciar este trabalho, pensar que ainda há relativamente pouco tempo tinha feito uma limpeza no frigorífico e que provavelmente seria difícil agora encontrar muitas coisas fora de prazo. Depois, abri a porta do frigorífico e comecei a fazer a lista do que já não podia ser comido — o resultado encheu uma folha A4 de ambos os lados.

O que havia, afinal, dentro do meu frigorífico? Coisas como um mini chocolate de leite trazido de um hotel e que de tão pequeno ficou perdido num canto de uma prateleira. Ou uma caixa de cubos de caldo de galinha e outra de caldo de legumes cuja validade terminara num dos casos há um ano e no outro há… quatro anos. Como é que nunca vi que elas ainda ali estavam?

Olho novamente para a lista, e segue-se uma longa enumeração de frascos de molhos e de doces. Aliás, concluo depois desta inspecção-surpresa que pelo menos no meu caso este parece ser o maior problema: molhos que foram comprados para usar num prato e de que nunca mais me lembrei (fazer compras para uma refeição seguindo religiosamente as listas de ingredientes dos livros de receitas tem este problema), doces e compotas que foram ofertas de Natal e que ao longo dos meses foram sendo empurrados para o canto mais longínquo, sempre atrás da nova embalagem de manteiga ou dos iogurtes, ou algum molho original, geralmente asiático, que na altura pareceu, já não me consigo lembrar porquê, irresistível.

É, obviamente, uma lista de que não me posso orgulhar, mas este é um exercício de sinceridade, e portanto há mais duas ou três coisas de que vou ter de falar: um pedaço de queijo que ganhou bolor (enrolado em papel de prata, nunca dei pelo que se estava a passar), uma embalagem de banha de porco comprada também para uma receita específica e que, quando a encontro, está perigosamente perto do final da validade (é preciso urgentemente usá-la em mais pratos), assim como uma barriga de porco fumada, que sofre do mesmo problema. Resta ainda uma misteriosa garrafa com uma bebida gaseificada, cujo prazo de validade terminou em 2010 e que, por algum motivo, se tinha tornado invisível aos meus olhos.

Dirijo-me depois para os armários que, à falta de uma despensa a sério, uso para produtos que não precisam de frio. Aí o balanço é um pouco melhor. À excepção de uma farinha especial para tempura cujo prazo de validade passou há uns meses (mas que parece ter ainda bom aspecto), encontro apenas duas embalagens de arroz, um risotto e o outro integral, que se aproximam do fim dos respectivos prazos, e que, nitidamente, foram sendo preteridas em favor do arroz mais clássico.

Recupero-as do fundo do armário, onde estavam destinadas a ficar esquecidas, coloco-as na parte da frente da prateleira, onde nunca poderei dizer que não as vejo, e prometo a mim própria usá-las antes de comprar mais arroz. Última coisa: um saco com uma mão-cheia de batatas fritas, compradas na casa dos frangos de churrasco e que sobraram. Estão velhas e moles. Vão para o lixo. E não me ocorre o que fazer com um saquinho de especiarias, de cheiro intenso, trazido de Marrocos, que eu sabia que teria dificuldade em usar e que, tendo sido comprado num mercado de rua, não tem qualquer data de validade.

De resto, está tudo bem e dentro dos prazos, o que é um alívio.

O passo seguinte é registar o que se consome diariamente e perceber o que acontece com as sobras. O primeiro dia corre bem, porque o que sobra do jantar dá perfeitamente para uma refeição para uma pessoa para o dia seguinte. Nada foi para o lixo, o que me parece animador. O objectivo é reaproveitar tudo o que puder ser reaproveitado. Mas logo no dia seguinte surge a primeira derrota: a última fatia de pão, do lado da côdea, que ficara no fundo da caixa, escondida debaixo do novo pão entretanto comprado, ganhara bolor e teve que se deitar fora. E, um dia depois, vejo que uma das pêras, que pareciam ainda pouco maduras na véspera, estava bastante estragada e já só se conseguiam aproveitar algumas — poucas — lascas.

Depois de ter identificado o problema dos molhos e das compotas no frigorífico, percebo agora que outra razão para desperdiçarmos comida é o facto de, simplesmente, não olharmos todos os dias para as coisas que temos em casa. O pão não está à vista, até porque não há espaço na bancada para isso. Mas as pêras estão — só que durante dois ou três dias, entusiasmada com umas excelentes clementinas que entretanto tinha comprado, esqueci-as. Má gestão, é evidente.

Complicado também, a este nível, é ter jantares com amigos — há a comida que fazemos e a que os convidados trazem, e geralmente sobra alguma (sobretudo a sobremesa). O único consolo (que, na verdade, é uma má notícia) é que o que se passa em minha casa passa-se na maioria das casas. Números relativos à União Europeia revelam que 42% do total do desperdício alimentar acontece nos lares.

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Descubro depois no The Guardian um artigo no qual os jornalistas fazem um exercício semelhante ao meu, percorrendo as várias prateleiras dos respectivos frigoríficos e descrevendo desde o cenário do “frigorífico pós-fim-de-semana tipo desastre de automóvel, com vodka e ingredientes japoneses experimentais, recordações de viagens e mil molhos picantes”, até às “caixas de plástico cheias com bocadinhos de carne, peixe, batata e massa, todas de proveniência e idade indefinidas”.

O estudo PERDA (Projecto de Estudo e Reflexão sobre o Desperdício Alimentar) — o único existente sobre este tema em Portugal — revela no relatório Do Campo ao Garfo que, das 1031 mil toneladas de alimentos que anualmente são deitadas fora, 324 mil acabam nos caixotes do lixo das nossas casas (o estudo é de 2012 e não prosseguiu depois disso por falta de financiamento). E o que desperdiçamos mais? Hortícolas e pão estão no topo da tabela, seguidos de perto pela fruta e depois pelo arroz, peixe e carne.

Um estudo sobre o mesmo tema, realizado no Reino Unido e intitulado Household Food and Drink Waste in the United Kingdom 2012, mostra igualmente os vegetais frescos e saladas no topo da tabela, seguidos pelas bebidas, a fruta fresca, carne e peixe, pão e lacticínios e ovos — num total de 7 milhões de toneladas (se bem que entre 2007 e 2012 tenha havido uma redução de 15% no nível de desperdício).

Calcula-se que uma família britânica média deita fora o equivalente a 24 refeições completas por mês, ou seja, praticamente uma refeição inteira por dia, segundo um relatório do Waste & Resources Action Programme, órgão consultor do Governo. E cerca de metade deste desperdício são alimentos que passam directamente do frigorífico para o caixote do lixo.

Em Portugal, os autores do PERDA foram tentar perceber junto das famílias quais as razões para um tão grande nível de desperdício — que é mais elevado nos mais jovens. E uma das razões tem precisamente que ver com os frigoríficos. Lê-se no estudo: “No que respeita ao armazenamento, concluímos que o uso do frigorífico ou do congelador pode ter um papel duplo. Por um lado, ajudam a preservar os alimentos, mas podem por isso mesmo ser também depósitos onde os produtos ficam esquecidos, antes de serem reencaminhados para o lixo.”

Outro problema identificado nas entrevistas feitas às famílias é “a influência do tipo de embalagem [que] pode ter um papel duplo — tanto ajuda a preservar os alimentos, como a causar mais desperdício.” Há “embalagens demasiado grandes para o número de pessoas do agregado” e há ainda o desperdício devido ao facto de ter passado o prazo de validade.

Há também quem confesse aos autores do estudo que deita fora “muitos iogurtes e queijo fresco” porque se esquece que os tem e na semana seguinte compra mais — é o caso de Manuel, “que vive sozinho”. E há José, “casado, pai de uma menina e o responsável por cozinhar na família”, que admite que de cada 100 euros que gasta em comida, “em média 30 vão para o lixo.”

Algumas famílias reconhecem que muitas vezes cozinham demais, receando que se fizerem menos comida não chegue — esta gestão é particularmente difícil nas famílias com filhos, cujos apetites e gostos variam. Aliás, existe um dado curioso: por um lado, as famílias com filhos tendem a desperdiçar mais do que as famílias sem filhos (um pai de três crianças pequenas afirma que estas são “imprevisíveis”); mas, por outro, quanto maior é o número de filhos, menor a quantidade de desperdício per capita da família.

Fala-se também da questão das sobras, e aí as opiniões dividem-se entre os que não gostam de “comer restos” e os que promovem, até com algum entusiasmo, a “noite dos restos”. O desafio — confirmado na minha semana-teste — é quando os restos não chegam para uma refeição e quando olhamos para o frigorífico e temos várias pequenas caixas com doses mínimas de “restos” e não sabemos como é que vamos encaixar o caril de camarão com o peixe cozido e o frango assado.

O grande problema dos restos, explica o chef Hélio Loureiro — que fez para a Gertal, empresa de catering para escolas e empresas, um trabalho de elaboração de ementas com o melhor aproveitamento possível dos ingredientes — é o facto de acharmos que basta aquecê-los. “Aquilo que sobra de uma refeição, no dia seguinte, pomos no micro-ondas e aquecemos, não fazemos realmente um reaproveitamento, não aproveitamos para uma nova receita.”

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Lembra, por exemplo, que “antigamente, quando se fazia cozido à portuguesa ao domingo, usava-se as sobras para fazer rissóis, empadão, almôndegas e conseguia-se fazer uma refeição para seis pessoas. Isso é que é reaproveitamento alimentar — fazer uma refeição nova”.

Mas há muitas outras formas de evitar o desperdício nas cozinhas, diz. Não precisamos, por exemplo, de deitar para o lixo as cascas dos legumes, elas podem, depois de bem lavadas, ser aproveitadas para dar sabor a caldos, tal como os ossos enriquecem um caldo de carne. O pão velho pode ser usado para açorda, claro, mas também para rabanadas ou sopa dourada, ou pode simplesmente servir para fazer pão ralado, sugere Hélio Loureiro.

Num ebook de receitas que elaborou para a Gertal, com o título 100% Alimento, o chef do Porto demonstra como podem ser usados componentes geralmente desprezados, “cascas, folhas, sementes e caules, grandes fornecedores de nutrientes essenciais como as vitaminas, fibras e minerais”. Nesse trabalho, é explicado que uma dieta convencional pode ser complementada com vários alimentos aproveitados na sua totalidade: as folhas das cenouras, beterrabas, nabo, couve-flor, brócolos, abóbora, rabanete; as cascas de batata, banana, tangerina, laranja, pepino, maçã, abacaxi, beringela, beterraba, melão, maracujá, manga, abóbora e courgette; os talos de couve-flor, brócolos, beterraba e couves; as entrecascas da melancia e maracujá, as sementes de abóbora e do melão, as asas e pescoços de aves, espinhas e cabeças de peixe, e as cascas de marisco.

Refiro a Hélio Loureiro o problema da compra de ingredientes específicos para uma receita e que depois dificilmente têm utilização noutros pratos. “Nunca funciono a partir de receitas. Olho para os produtos e depois vejo o que posso fazer com o que tenho. Por isso aproveito tudo até ao fim”, responde. Claro que isso implica um conhecimento de cozinha que nem toda a gente tem, mas que deveria, defende Hélio Loureiro, começar a ser dado nas escolas. “Tem de se começar nas escolas, como se fez com a triagem do lixo ou a poupança de electricidade. E tem de ser um ensinamento prático, porque só teórico não é suficiente”.

Mas, quando pensamos em reaproveitamento, surge necessariamente o problema da segurança alimentar. E se nos restaurantes e nos supermercados e mercearias há regras apertadas e vigilância, nas nossas casas temos de ser nós a avaliar o que é e o que não é seguro. Ouvimos Graça Mariano, do Departamento de Riscos Alimentares e Laboratórios da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE), para perceber o que fazemos bem e o que fazemos mal a este nível.

O bolor, por exemplo, que perigo representa? “Em regra, o bolor pode ser retirado”, explica Graça Mariano, “mas não sabemos que tipo de fungo é que o está a provocar, e alguns fungos produzem micotoxinas, que são substâncias tóxicas. Nunca podemos ter a certeza de que, mesmo que retiremos o pedaço com bolor, não tenha havido uma migração de micotoxinas para o resto do ingrediente”. Claro, que, sublinha, trata-se em geral de elementos tóxicos que só fazem mal ao organismo se consumidos em grandes quantidades, mas o facto é que não podemos dizer que ficamos livres de riscos se nos limitarmos a retirar o bolor.

Outra questão que levanta muitas dúvidas é a dos prazos de validade. Tem havido, aliás, algumas campanhas para esclarecer aquilo que Graça Mariano agora repete: “É preciso perceber a diferença entre o ‘consumir preferencialmente antes de’ e o ‘consumir até’.” Os produtos que têm a primeira indicação, geralmente, mantêm-se bons depois da data indicada (estamos a falar de produtos como arroz, azeite, óleo, leguminosas, conservas).

Os que têm a indicação “consumir até” são “produtos perecíveis e devem ser consumidos até ao dia indicado”, embora, por exemplo no caso dos iogurtes, se forem conservados à temperatura certa para que se mantenham estáveis, possam ser consumidos até alguns dias depois. No entanto, frisa a técnica da ASAE, “não há género alimentício de risco zero”. “Quando se dá uma alteração das condições ambientais, há uma carga microbiana que se multiplica” e pode chegar a um ponto em que se torna prejudicial.

No estudo PERDA, dos 41 entrevistados, apenas sete disseram respeitar rigorosamente os prazos de validade. “Os restantes”, lê-se no relatório, “declararam que preferiam verificar eles mesmos a qualidade do produto, sempre que possível, com base no seu aspecto, cheiro ou sabor.”

Mas até que ponto podemos confiar na análise dos nossos sentidos? Se um alimento cheira bem e tem bom aspecto, mesmo que já tenha passado do prazo, é seguro consumi-lo? Nem sempre, responde Graça Mariano. “Não é absolutamente fiável porque há bactérias que não dão evidência de que estão lá. As patogénicas não dão muitas vezes sinal e o alimento até nos pode saber bem.”

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Há, portanto, um grau de bom senso que podemos e devemos usar, mas, como parece evidente que estas são questões que ainda levantam muitas dúvidas, a ASAE lançou, entre outras iniciativas de esclarecimento, a campanha Alimento Seguro destinada às escolas, onde são explicadas às crianças algumas regras básicas: a importância de lavar as mãos, as formas de conservar os alimentos, a leitura dos rótulos e — repare-se — como fazer a distribuição correcta dos alimentos no interior do frigorífico.

Relativamente a este último ponto, a regra, lembra Graça Mariano, é a do “primeiro a entrar, primeiro a sair”. Ou seja, os novos iogurtes não devem empurrar os mais antigos para o fundo, a fruta acabada de comprar não deve esconder a que já lá estava. Mas isso é algo básico, que já todos sabemos. Ou será que não?

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