"Tenho muita violência em mim"
Um hipster hiperactivo, cheio de vigor e determinação, Xavier Dolan faz filmes em simbiose com o tempo em que vive. Desejoso de se auto-expor? Inevitavelmente. Mas eis como, em Mamã, ele transcende o seu narcisismo.
Pois atrevia-se a querer nada mais nada menos que o domínio global, di-lo ainda hoje, cinco anos – e cinco filmes – depois. Mas o caminho não é apenas o destino e, em Maio de 2014, Jean-Luc Godard teve de dividir uma distinção com ele (ou terá sido ao contrário?): os jurados do Festival de Cannes atribuiram o Prémio do Júri, ex aequo, a Godard pelo seu primeiro filme em 3D, Adieu au langage, e a Xavier Dolan por Mamã.
Terá visto um ou dois filmes de Godard, diz Dolan, mas não gostou muito. Soa a presunção e a insolência. Claro que não desdenha do prémio: “Quando muitos críticos começaram a dizer que podíamos ganhar, a dada altura, começámos a acreditar também. Se não ganhássemos, teríamos ficado algo desapontados.”
Dolan não esconde o seu brilho e, quando tem de ser, dá-lhe ainda um pouco mais de lustro. Aí, talvez não seja assim tão diferente de Godard. Se ousássemos agora pensar que Jean-Luc também era um poseur, como Dolan está sempre a ser apelidado, onde nos levaria esse pensamento? Existe um consenso sobre a substância que realmente encerram os seus filmes? Sobre as excêntricas obras de Dolan, o discurso é sempre: demasiado vazias, demasiado ruidosas, demasiado longas, demasiado tudo. Em 2010 voltou a estar em Cannes com Amores Imaginários (que nada tem de pose oca), tal como com o seu terceiro filme Laurence para Sempre, em 2012. Depois de Veneza lhe ter dado a honra de estar em competição com Tom na Quinta, de 2013, seguiu-se Cannes, com Mamã.
Xavier e Jean-Luc
Um drama sobre a determinada Diane e Steve, o seu filho de 15 anos, que se move como uma bomba-relógio activada por entre as suas abruptas explosões de ira e violência. E, no entanto, o que os dois vivem é uma simbiose, uma relação de dependência mútua que, embora brutal, se baseia no amor, no espírito de humor e na compreensão.
“Tenho muita violência em mim”, diz Dolan. “Fui uma criança muito violenta, e na escola também. Só a pouco e pouco aprendi a canalizar essa violência de outras formas. Por exemplo, a realização.” De onde provém essa violência, não sabe, ou não será este o contexto em que quer falar disso. “A violência física e verbal que sinto em mim é também uma ânsia de liberdade”, comenta. “Tem a ver com autenticidade, com a aceitação, pela sociedade, de uma certa alteridade.”
Dolan cresceu como branco e privilegiado, nas suas próprias palavras, nos arredores de Montreal – não num bairro problemático, embora ainda hoje se orgulhe de, ainda criança, ganhar dinheiro a representar e poder assim ajudar a mãe, entretanto separada do pai. Com este, originário do Egipto, tem pouca ligação, diz. E: “Sim, sou gay. Mas isso não quer dizer nada. Não é com isso que tem a ver. Não tenho nenhum problema em ser gay, mas não faço filmes para o chamado cinema queer, seja lá isso o que for. A cultura gay é simplesmente uma parte da cultura. O que faço tem a ver com o amor, com a arte, quero retratar pessoas que, por vezes, vivem à margem da sociedade.”
Já Godard sempre foi, não um outsider, mas um precursor, e continua a sê-lo aos 83 anos. Alguém que foi dos primeiros a utilizar as mais recentes tecnologias: a câmara manual, o vídeo, a coloração da película e, agora, um filme em 3D. Dolan, pelo contrário, parece ser quase retro, e não só na sua inclinação por uma certa estética vintage que, no entanto, não vai além dos anos 90. “Estilo”, diz, “significa saber quem somos. Quando sabemos quem somos, podemos partilhá-lo com o mundo: como gritamos, como choramos, como pensamos. Quando sabemos quem somos, então podemos fazer filmes que transportam uma determinada visão. E a visão não é mais do que a forma como vemos as coisas.”
O mesmo poderia bem dizer Godard da sua obra; é difícil dar indicações sobre a acção quando não existe acção – o que não significa, naturalmente, que não se passe nada nos seus filmes. Festivais, críticos e fãs de instruções de utilização têm sempre, porém, uma abordagem convencional: “Uma mulher casada e um homem solteiro encontram-se. Amam-se, brigam, batem-se. Um cão vagueia entre a cidade e o campo. Passam as estações. No fim ouvem-se latidos e o choro de um bebé”, promete, por exemplo, o catálogo de Cannes sobre Adieu au langage.
Algo de semelhante se passa em Mamã, mas aqui o cão não é necessariamente um animal, nem o bebé pequenino. Dolan constrói os seus filmes novelescamente e, para isso, escava na história do cinema como se ela ainda não tivesse sido escrita. “Eu ainda nunca tinha visto um filme de Hitchcock”, protestava, por exemplo, sempre que era interpelado sobre claros paralelos com este cineasta em Tom na Quinta. Não se lhe pode atribuir calculismo quando a sua atitude transmite uma tal autenticidade. Um hipster hiperactivo, que procura genuinamente replantar terrenos circunscritos e revolver todas as superfícies, ainda cheio de frescura, vigor e determinação. Dolan é um realizador que faz filmes em simbiose directa e inspiração recíproca com o tempo em que vive. De forma narcisista, desejosa de se auto-expor? Inevitavelmente. Com uma estética Instagram e citações inspiradoras? Também.
Godard também o consegue. “Deus fez duas grandes invenções”, diz-se em Adieu au langage, “o algarismo zero e a eternidade.” Uma mulher discorda: “Não, as grandes invenções de Deus são o sexo e a morte.” Não que se tenha voltado a isto em lado algum, mas trata-se também de um belo aforismo, talvez derivado de um dos 20 poetas e pensadores que o realizador enumera, como doadores de pensamentos, no genérico final. “Doadores de pensamentos... gosto da expressão”, comenta Dolan.
“A imagem tornou-se uma ameaça para o presente”, diz ainda alguém em Adieu au langage – e Godard refere-se provavelmente ao facto de as imagens estarem a substituir cada vez mais a experiência. Talvez ele sabote assim as suas próprias imagens, lhes negue um contexto, separe imagem, som, significado. O estilo de Godard é único, uma cornucópia de referências cruzadas culturais, mas ao contrário de Alexander Kluge, que também domina maravilhosamente esta técnica, essas referências mantêm-se isoladas e sem continuidade.
Dolan faz o oposto, e talvez ele pense demasiado no final, em vez de deixar isso para o público. As suas imagens são uma forma de expressão directa do seu conteúdo. Em Mamã– e não só –, as personagens que se sentem armadilhadas e encerradas dentro de si próprias não têm de se mover numa moldura de 1:1. Se – mas só se – conseguirem libertar-se sozinhas do que as prende, o realizador dá-lhes também mais espaço. Para isso, muda o formato do filme a meio, de uma imagem quase quadrada para o formato 4:3. Deixa que a personagem principal abra literalmente a imagem no momento de felicidade em que quer abraçar o mundo inteiro. Se a felicidade esmorece, Dolan volta a encolher a imagem – uma relação entre conteúdo, emoção e forma, transbordante, exuberante, quase febril. “A ideia da mudança de formato ocorreu-me por causa de um videoclipe que fiz”, esclarece. “O formato 1:1 não permite desvios nem divagações. Isso deu-me muito jeito aqui, porque era importante que as personagens estivessem exactamente no ponto central, também como contrapeso para o meu egocentrismo.”
Por vezes, efeito e tese também se fundem indistintamente no cinema de Godard, como no seu recorrente lamento de que a humanidade já não saberá ler. Dolan, por sua vez, não se lamenta, pois não tem e não quer ter o distanciamento necessário em relação às personagens, ao que narra e ao tempo em que faz os seus filmes. “Gosto de observar as pessoas: a maneira como riem, como comem, como falam, como limpam a boca, como ajeitam o cabelo. E diverte-me imitá-las. Um dia, as pessoas vão perceber que eu sou muito melhor actor que realizador.”
Entretanto, Godard reúne três pessoas em torno de uma banca de livros, e todas estão noutro sítio qualquer: duas teclam, absortas, nos seus smartphones, a terceira folheia um livro ao acaso, perdida nos seus pensamentos – e os três polegares estão dispostos uns atrás dos outros. Talvez a geração iPhone não diga muito a Godard mas, como o deus que é, pode olhar para ela como quiser. Dolan (ainda) não tem esta opção, a sua perspectiva não é omnipresente. “Sabe”, diz subitamente, “a chave está no coração, não na cabeça.”
A figura do pai não aparece nos filmes de Dolan. “Nunca tive uma relação particularmente boa com o meu pai e, como personagens dos meus filmes, os pais não me interessam muito. Não sinto que tenham de ser defendidos. Sim, existem, e isso basta. Acho que as mulheres merecem muito mais atenção. Figuras de mulheres verdadeiras, quero eu dizer, não os embelezamentos ou as vítimas, ou as strippers, ou as loiras burras, ou a irmã descompensada de um tipo qualquer, mas personagens inteiras. Dá-me um grande prazer ver as mulheres ganhar.”
Sonhar a cores
Dolan tinha 17 anos quando começou a trabalhar num guião com o título Eu matei a minha mãe. Deixa-a ressuscitar agora? “Hoje vejo o filme de maneira muito diferente de há cinco anos”, diz abanando a cabeça. “Vejo sobretudo muitos erros e, por vezes, acho-o mesmo horrível. Na altura, estava do lado do filho; hoje, defendo a mãe. Noto que estou a fazer progressos. Como artista, mas, acima de tudo, como pessoa, a forma como conto histórias, como desenvolvo as personagens.”
No entanto, continua a sentir-se a sua insegurança interior, mesmo que continue a fazê-la passar por megalomania, ainda que bastante mais controlada. “Duvido permanentemente do que faço”, reconhece. “Escrevo cheio de dúvidas, sobre mim e sobre o meu trabalho. É por isso que leio todos os artigos que são escritos sobre mim.” Quando fala, todas as frases parecem terminar com um ponto de exclamação.
Não quer definir as personagens de Mamã como fracassados, ainda que tudo lhes fuja ao controlo: “No fundo, sempre vi o filme como muito negro, mas queríamos que ele irradiasse muito calor, esperança, coragem e amor para o exterior. Não queria traí-las, mas sim deixá-las mostrar que podem criar alguma coisa.” Novamente uma combinação plausível entre conteúdo e forma: “Contar a história destas pessoas em imagens cinzentas e pessimistas parecer-me-ia um automatismo – e não as teria ajudado, mas teria sufocado tudo, sobretudo os nossos sentimentos em relação a elas.”
Se nunca é fácil, a relação mãe–filho, tal como Dolan a retrata, é, apesar de tudo, simbiótica. “Nos meus filmes conto sempre histórias de amor. Têm um princípio e têm um fim, e isso permite-me utilizar estruturas narrativas. Trata-se de metáforas em torno daquilo por que duas pessoas passam juntas, os problemas com que se debatem. E no fim, após o clímax, cada um segue o seu caminho. Claro que também podia fazer um filme sobre um casal feliz, como se sentam à noite, contentes, no sofá, mas é mais interessante a luta pelo amor, a luta pela liberdade, uma grande paixão.”
Em todos os filmes que fez até agora fala-se, de uma ou de outra forma, de mães e filhos. “Trata-se de um tema que não me larga. As mães inspiram-me. E ainda que Mamã pareça falar do filho, o núcleo do filme é a mãe. Quando digo mãe quero dizer a figura em si, o que ela representa, a função que desempenha numa sociedade e o que o seu papel significa para certas pessoas. As mães são o alicerce de tantas coisas... Têm tantas qualidades, tantos defeitos, são vítimas também dos seus sonhos, dos seus desejos. Mas a minha relação com as mães ou com a minha mãe não mudou desde o meu primeiro filme. Desde o princípio, nunca foi nem positiva nem negativa: quis simplesmente descobrir o que era e é. O que há de novo neste filme é que ninguém rejeita ninguém. A vida em comum fracassa devido a outros factores.”
Na sua fama mundial, acredita mais do que nunca: “Já me disseram muitas vezes: ‘Pára de sonhar a cores, fica onde estás.’ Mas eu continuo a pensar que é preciso sonhar em grande para avançar.” Contudo, não dá mais de dez anos para que a sociedade colapse. “Não estou a ser pessimista; simplesmente, sou uma pessoa informada.”
Ainda assim, já está a trabalhar no seu próximo projecto, uma grande produção com Jessica Chastain. “ Mas não é um filme de Hollywood, é uma sátira sobre Hollywood. Um filme sobre filmes.” Um plano nada modesto para um jovem de 25 anos... Peço desculpa, sim, é irritante: “Estão sempre a falar-me da minha idade e eu não percebo porquê”, irrompe Dolan, com dois pontos de exclamação. “O que é que isso tem? No ano que vem tenho mais um ano, há dois anos tinha menos dois anos. E depois? Essa constatação não me traz nenhum enriquecimento, não é por causa disso que serei melhor pessoa ou melhor artista.” Palavras sábias para alguém com apenas... bem, deixemos isso.