“Um médico legista nunca gosta de ter corpos não identificados. É uma frustração”
João Pinheiro. O vice-presidente do Instituto Nacional de Medicina Legal recorda processos bem e mal sucedidos de identificação de cadáveres, a propósito das estatísticas que foram divulgadas nesta terça-feira.
De onde vêm os corpos com os quais lidam?
De várias proveniências. Dos hospitais, por exemplo — cadáveres que dão entrada no hospital, vítimas de ataque cardíaco, de morte súbita, para os quais não há informação nenhuma, acabam por ser remetidos para o INMLCF. Também vêm as vítimas de acidentes de viação, de facadas, tiros. Vêm porque há uma forte convicção que virão a ser alvo de autópsia médico legal, porque está previsto na lei que seja assim quando há uma morte violenta. Os corpos também podem vir directamente do exterior.
Por exemplo?
Faleceram numa rixa, num homicídio, num acidente de viação, num suicídio numa linha de comboio, apareceram num poço, no mar... e vêm acompanhados pela autoridade policial respectiva. Se vierem do mar vêm com a Polícia Marítima, se foram vítimas de um homicídio, geralmente com a Polícia Judiciária... E contactamos com estas polícias todas. Depois, há situações de morte natural, a maioria das quais acontecem em casa — pessoas sem assistência, idosos que vivem sozinhos... Estes cadáveres também vêm acompanhados por uma autoridade policial. Pode haver autópsia ou não...
Quem decide?
Se me perguntar em abstracto, eu acho que toda a gente devia ser autopsiada. Mas quem decide é o Ministério Público.
O senhor procurador decide com base nos critérios legais se a autopsia é para dispensar ou se é para mandar fazer. Alguns, quando têm dúvidas, fazem um telefonema e nós damos a nossa opinião.
Existe na lei uma figura que temos estado a promover, porque estava na lei mas não era usada, os chamados exames do hábito externo e que são, digamos, exames apenas do exterior [do cadáver], não se abre. O fundamento legal é, exactamente, ajudar a decisão do magistrado.
Quanto tempo fica o corpo à espera?
Depende. Nunca podemos começar a autópsia sem a ordem do senhor procurador. Para se fazer uma autópsia temos de cumprir os nossos requisitos: um médico e um técnico. E temos que ter o chamado “fax”, aqui na gíria, que agora é um email... e que é a ordem do senhor procurador.
O que fazem quando o morto não tem família?
A lei diz que não se pode enterrar ninguém antes dos 30 dias. A média é de quase um ano para enterrarmos estes corpos e a mim não me parece mal. No caso dos [que são] identificados tentamos esgotar todas as hipóteses de encontrar os familiares. Veja o caso dos estrangeiros. Os casos diminuíram muito — mas quando tivemos cá os ucranianos era um drama. A embaixada era contactada, mas primeiro que localizassem a família... e depois a família queria vir a Portugal mas não podia, não tinha dinheiro.
Quem faz os contactos com as embaixadas são vocês?
É um trabalho burocrático que de medicina legal nada tem, mas que nos ocupa imenso tempo.
Assim que há um corpo sem identificação lança-se mão de tudo o que há. Há uma série de técnicas que começam na autópsia — a fotografia, as impressões digitais, a fórmula dentária, a estatura, o peso, a cor dos olhos e dos cabelos... Depois, quando as polícias nos trazem um não identificado, já procuraram saber no local alguma coisa... agora, por vezes, não se consegue. Nós guardamos aqui esses arquivos, as fotografias, o DNA (mas o DNA só serve para alguma coisa quando se pode comparar com alguém... se não, não serve para nada).
Até quando é que se consegue tirar uma impressão digital?
Cada corpo é um corpo. Podemos conseguir tirar impressões digitais num corpo com um ano, ou dois ou três, e num corpo com quatro dias não conseguir. Depende das circunstâncias (o sítio onde estava o corpo, a estação do ano, se havia animais à volta, se estava na água, se estava seco).
Quando falham toda as démarches e não conseguimos identificar [o cadáver], ou está identificado mas não aparece ninguém, começamos as démarches burocráticas, que são muito maçadoras. Contactar as embaixadas, por exemplo. As câmaras municipais. O que está na lei é que as câmaras é que devem promover a inumação.
Há algum caso que o tenha marcado mais?
Um médico legista nunca gosta de ter não identificados, tal como nunca gostamos quando não conseguimos estabelecer a causa de morte, o que acontece em 5 a 7% dos casos. É uma frustração. Lembro-me de um caso na zona de Leiria... Tinha desaparecido um francês — uma família francesa que estava de férias, a rapariga foi para o mar, aquilo começou a correr mal, o irmão foi para ajudar, conseguiu ajudá-la, mas ficou ele lá e nunca mais apareceu. Passado duas ou três semanas apareceu um corpo no mar. Um corpo grande. Quando o vimos convencemo-nos que era o francês, tudo batia certo. A nossa polícia entrou em contacto com a polícia francesa, fizeram-se as colheitas sanguíneas lá, para o DNA. Levou imenso tempo.
Nove ou 10 meses depois vieram as análises de França, fomos cruzar e... não era o francês. Ficámos tristíssimos. Ainda hoje não sabemos quem é (esse corpo já foi enterrado). As pessoas querem muito os seus familiares. É importante para fazer o luto. Daí que seja fundamental fazer-se uma boa perícia.
Recordo-me de outro caso... Uns caçadores encontraram uma senhora, num pinhal, 90 e tal anos... estava esqueletizada, apenas com ossos. Um osso para aqui, outro para ali, a roupa, uma bata azul. Chamámos o antropólogo forense, eles através dos ossos conseguem sempre dizer se é masculino ou feminino, a idade aproximada, por aí, e fizemos o estudo conjunto desse corpo. Havia uma característica interessante: a senhora tinha tido umas fracturas nas costelas que entretanto curaram, as marcas estavam lá. Não tinha sido daquilo que ela tinha morrido. Chamamos a isso factores de individualização positiva.
Também tinha entesopatias — que são saliências ósseas onde os músculos se inserem que nos permitem até dizer o lado dominante da pessoa, se é destro ou canhoto, e também se a pessoa era muito ou pouco activa, porque quem é muito activo tem os músculos mais exercitados e tem as entesopatias maiores.
E depois?
A polícia foi perguntar na zona se alguém se lembrava de uma pessoa que tivesse desaperecido. E uma senhora disse que a mãe tinha desaparecido... Pedi à Judiciária para a trazer cá. “A minha mãezinha desapareceu há três anos, nem queira saber o que passei”, disse ela. “Então e a sua mãezinha era assim mais ou menos de que idade?” E ela: “90 e tantos anos.” “E era uma pessoa muito mexida?” “Ah isso não parava, sôtor!” É engraçado porque as pessoas começam a olhar para nós como se fossemos bruxos. “E ela em tempos teve, assim, alguma queda?” “Caiu. Até esteve no hospital, partiu umas costelas.” “Do lado direito?” “Mas como é que o senhor sabe? Não me diga que encontrei a minha mãezinha!”
Nem imagina a alegria dela! Ficou feliz porque encontrou finalmente a mãe. Faz o seu luto, faz o funeral.
Depois recolhemos o DNA e tudo bateu certo. Entregámos os ossos e lá foi a senhora.
É um final feliz?
Muito feliz, sobretudo pela fidedignidade dos nossos exames. Quando chegou cá, aquela senhora era uma triste desconhecida.