Os linces, a dívida e Ricardo Salgado

O lince depende essencialmente da população de coelho, que é uma espécie muito atreita a epidemias devastadoras.

Mas ao ver as reportagens sobre o assunto, pareceu-me ver Ricardo Salgado na comissão de inquérito: o sucesso na recuperação de linces que se vinha a verificar desde 2000 deve-se aos programas de reprodução em cativeiro, mas os actuais problemas devem-se a atropelamentos e outras coisas que tais, incluindo o coelho.

Assim, quando corre bem, a responsabilidade é de quem faz cria em cativeiro, mas, quando corre mal, a responsabilidade é do coelho ou das estradas.

O mesmo Estado que há anos se recusa a ter sinais de trânsito nas áreas muitíssimo localizadas de atravessamento de anfíbios, como bem lembrou Paulo Barros, conseguiu rapidamente colocar uns sinais de trânsito nas estradas à volta dos cercados onde ficaram os linces.

Que me perdoem, mas estamos todos a pagar dolorosamente uma dívida que, no essencial, foi feita assim: numas festas muito bonitas que celebram a captação de recursos de todos por alguns, na convicção de que isso beneficia politicamente o governo de turno.

Comecemos pelo princípio. Vale a pena ter linces em cativeiro? Sim, vale.

O lince depende essencialmente da população de coelho, que é uma espécie muito atreita a epidemias devastadoras, como foi o caso da mixomatose nos anos 50, da pneumonia hemorrágica viral nos anos 80, e agora de uma nova estirpe do vírus da mesma doença. De 30 em 30 anos tem sido uma razia nos coelhos e, consequentemente, a população de lince tem quedas bruscas quando desaparece o coelho, e recuperações lentas quando recupera o coelho.

Como não sabemos até onde pode ir o efeito da razia nos coelhos, devemos acautelar a possibilidade de tudo correr mal e a população de linces deixar de ser viável na natureza, sendo necessário recuperá-la a partir de animais em cativeiro.

A função da cria em cativeiro é a de um seguro de vida para as populações de lince. Esta função não necessita de grandes centros especificamente destinados a produzir linces de aviário para reforçar populações naturais; precisa apenas de um programa bem gerido de manutenção de um número relevante de linces que garanta a diversidade genética desta população em cativeiro, para o caso de um desastre nos obrigar, aí sim, a produzir linces de aviário para relançar as populações selvagens.

Provavelmente, a forma mais eficiente de garantir esta função até é através de parcerias bem definidas, como a enorme rede de jardins zoológicos do mundo, que têm vindo a ser cada vez mais instrumentos de conservação ex situ e cada vez menos meras colecções de animais expostos para gáudio dos visitantes.

Vale a pena olhar para os números dos censos da população de lince de 2013 para perceber melhor o que está em causa.

Estes censos permitem verificar que, quando se declarou esta estirpe de vírus que está a dizimar o coelho, os resultados foram:

1.º) O primeiro sinal foi uma queda brusca e profunda do número de crias, ilustrando a relação entre abundância de alimento e produtividade das fêmeas;

2.º) Uma queda, mais suave, e posterior, dos números totais de linces (evidentemente por menor disponibilidade alimentar e por diminuição da reposição geracional);

3.º) Um aumento da área de ocorrência de lince (a escassez alimentar faz diminuir a densidade e obriga à dispersão -  por isso os avistamentos em locais estranhos, quer por volta dos anos 80, quando foi morto um lince na serra de Aire e existem notícias de linces nas dunas de Mira, quer agora no Sudoeste alentejano);

4.º) Na sequência, aumento de mortalidade nas estradas, em consequência do alargamento da área de ocorrência e do maior esforço necessário para alimentação.

Dizer que o problema principal é um efeito de quarta ordem numa série de efeitos em cascata é simplesmente absurdo e os sinais de trânsito não passam de propaganda, isto é, uma espécie de cartazes espalhados pelas estradas a lembrar-nos os artistas convidados para actuar na festa, distraindo-nos do custo brutal deste programa e da sua quase irrelevância para a conservação da espécie, cuja população aumentará ou diminuirá em função das flutuações da população de coelho.

Todo o resto do sector da conservação entretanto agoniza, quer por falta de recursos, quer por falta de juízo.

Nota: Temporariamente, sou presidente de uma associação de conservação da natureza, a Montis. Nunca usei este espaço para falar da campanha que crowdfunding que fizemos recentemente (acabou no dia 15 de Dezembro), por entender que este espaço recolhe as minhas opiniões, mas não serve para desenvolver as minhas agendas pessoais. Gostaria, por isso, de deixar muito claro que as minhas opiniões neste artigo apenas me vinculam a mim e não a associação de que faço parte e na qual está muita gente que seguramente não subscreve este artigo.

 

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