Aves têm nova árvore da vida sustentada na genética
O que faz que uma ave seja uma ave? Quando é que as aves perderam os dentes? Qual a relação entre e o canto das aves e a fala humana? Uma análise genética sem precedentes dos genomas de dezenas de espécies de aves permitiu vislumbrar respostas — e algumas delas são surpreendentes.
Um manancial de primeiros resultados já deu origem à publicação simultânea de 28 artigos científicos na quinta-feira, oito dos quais na revista Science e o resto distribuído por vários outros jornais científicos. Outros ainda estão em curso de revisão e deverão ser publicados em breve.
As espécies de aves actuais são muitas e muito diversas – algumas medem poucos centímetros de altura (como os colibris) e outras quase três metros (como as avestruzes); têm penas de todas as cores e feitios; vivem em todo o tipo de habitats, comem todo o tipo de alimentos. Umas cantam, outras não – e há ainda as que aprendem a imitar qualquer som, da voz humana às motosserras…
Isto tem dado grandes dores de cabeça aos especialistas que tentam construir a árvore genealógica das aves. As características anatómicas e morfológicas das diferentes espécies não chegam nem para começar a desemaranhar os caminhos evolutivos que desembocaram nesta espectacular biodiversidade. E mais: como os estudos genéticos que têm sido feitos para tentar consolidar uma visão global da evolução das aves apenas tomavam em conta umas dezenas de genes específicos, só contribuíam para aumentar a confusão, gerando muitos resultados contraditórios.
Porquê? Precisamente porque as aves evoluíram e diversificaram-se tão depressa que as várias linhagens não se conseguiram diferenciar o suficiente, a nível genético, para ser possível distinguir os diversos ramos da árvore só com base num punhado de genes, explica em comunicado a Universidade Estadual do Luisiana (EUA), cujos cientistas participaram no trabalho.
Mas agora, um consórcio internacional que integra mais de 200 investigadores oriundos de mais de 80 instituições em 20 países (incluindo Portugal), analisou a totalidade do genoma de dezenas de espécies de aves modernas. E ao fim de quatro anos, produziu a tão procurada nova árvore genealógica.
Tudo começou em finais de 2010, quando os três “pais” do consórcio – Guojie Zhang, da Universidade de Copenhaga (Dinamarca) e do Instituto de Genómica de Pequim (China); Tom Gilbert, da Universidade Curtin (Austrália) e do Museu de História Natural da Dinamarca; e o neurocientista Erich Jarvis, da Universidade Duke e do Instituto Médico Howard Hughes (EUA) – decidiram utilizar a capacidade sequenciação genética das técnicas actuais para atacar frontalmente o problema da genealogia aviária, “uma das questões mais inacessíveis da biologia evolutiva”, como notou Gilbert numa teleconferência de imprensa organizada pelos editores da Science, dois dias antes da publicação dos artigos. “Quando Tom Gilbert e Guojie Zhang me convidaram a juntar-me a este esforço para tentar resolver a árvore genealógica das aves através da análise da totalidade do genoma, aceitei com entusiasmo”, acrescentou Jarvis.
Três séculos de cálculos
O que fizeram as equipas do auto-designado Consórcio Filogenómico das Aves (Avian Phylogenomics Consortium)? Compararam os genomas de 48 espécies de aves – corvos, patos, falcões, periquitos, íbis, pica-paus, águias, corujas e muitas outras – que representam os principais ramos das aves modernas. Apenas três desses genomas (galinha, peru e mandarim) já existiam; 45 foram sequenciados pelo próprio consórcio. Diga-se ainda que, para obter o ADN de cada espécie, os autores recorreram a amostras congeladas de tecido de aves recolhidas e conservadas, ao longo dos últimos 30 anos, por vários museus de ciências naturais do mundo.
E assim, os cientistas obtiveram uma nova árvore genealógica que integra, com um nível de pormenor sem precedentes, a complexa história evolutiva inscrita no ADN das aves – e que fornece resultados coerentes.
Mas não foi fácil. E do ponto de vista técnico, o feito foi, no mínimo, hercúleo – exigindo o desenvolvimento de novas técnicas de cálculo. Sem ir mais longe, basta dizer que foi preciso tratar uma quantidade astronómica de dados, relativos a cerca de 14.000 sequências genéticas para cada espécie de ave. “Para 50 espécies, o número de árvores da vida possíveis é maior do que o número de átomos do Universo”, salienta por seu lado em comunicado Andre Aberer, do Instituto de Tecnologia de Karlsruhe (Alemanha), que participou na análise computacional dos dados. E entre essas árvores todas, é preciso encontrar uma que explique os dados fósseis, anatómicos e outros de forma plausível.
Este aspecto do trabalho foi liderado pela matemática Tandy Warnow, da Universidade do Illinois (EUA). Como explica esta cientista em comunicado, existem duas abordagens estatísticas completamente diferentes para construir uma árvore da vida a partir de dados genéticos. A mais convencional consiste em reunir todos os dados numa gigantesca tabela e calcular uma árvore global a partir deles. A outra consiste em olhar para os dados relativos a cada gene em separado (de todas as espécies ao mesmo tempo), calcular uma árvore genealógica para esse gene e a seguir juntar todas essas árvores de genes individuais para obter a árvore genealógica global das espécies em estudo. E de facto, os cientistas decidiram construir uma árvore com cada uma destas técnicas, esperando que as duas iriam coincidir.
Só que, numa primeira fase, as duas árvores obtidas não batiam certo. Mas Warnow e os seus colegas acabaram por perceber que a segunda abordagem introduzia erros nos cálculos devido à própria natureza da evolução genética. Isso obrigou-os, para além de todo o resto, a inventar uma nova técnica para eliminar esses erros de forma fiável. No fim, os seus esforços foram recompensados: as duas árvores revelaram ser quase idênticas, como explicou Warnow na já referida teleconferência.
Os cálculos exigiram a utilização de supercomputadores, com um total de 4000 processadores informáticos a trabalhar em paralelo em vários centros de computação, pois a computação da árvore teria demorado 300 anos se tivesse sido utilizado apenas um computador convencional. E só os testes preliminares do método demoraram o equivalente de 100 anos…
Perda maciça de genes
Esta primeira “leva” de resultados já revelou pistas absolutamente inéditas – e por vezes inesperadas – acerca da evolução das aves. Sobre a perda dos seus dentes, a evolução do canto nalgumas espécies, sobre o antepassado de todas as aves. E ainda insuspeitados parentescos entre aves aparentemente muito diferentes e a redução radical do genoma das aves ao longo da sua história.
Uma das coisas que os cientistas fizeram foi juntar a nova árvore e os achados fósseis para datar o início da explosiva expansão das aves. Resultado: esse “big bang” foi há 66 milhões de anos – ou seja, precisamente logo após um asteróide ter acabado com os dinossauros, como já se pensava.
A nova árvore genealógica também permite estimar que o “big bang” das aves terá acontecido num ápice em termos evolutivos: logo nos primeiros 10 a 15 milhões de anos que se seguiram. E ainda que as aves perderam os seus dentes há 116 milhões de anos; e que a aprendizagem do canto pelas aves está relacionada, em termos genéticos e neuronais, com a aprendizagem da fala nos humanos.
Outra novidade a propósito das capacidades vocais: a aprendizagem do canto terá surgido nas aves pelo menos duas vezes ao longo da evolução, de forma independente – ou seja, em espécies de aves afastadas do ponto de vista genealógico. Uma vez nos papagaios e nas aves de canto em geral, provavelmente a partir de um antepassado comum; e outra nos colibris, que pertencem a um ramo diferente da árvore (“sim, os colibris cantam e aprendem a cantar dos seus pais”, diz o co-autor Cláudio Mello em comunicado da Universidade de Saúde e Ciência do Oregon).
De destacar ainda, o facto que o antepassado comum a todas as aves terrestres – incluindo papagaios e aves de canto, falcões e águias – terá sido um grande predador (não esqueçamos que as aves já tiveram dentes…); e também que, ao contrário do que seria de esperar, os flamingos são parentes muito mais próximos dos pombos do que, por exemplo, dos pelicanos.
Em Portugal, participaram no consócio Agostinho Antunes e os seus colegas do Centro Interdisciplinar de Investigação Marinha e Ambiental (CIIMAR) da Universidade do Porto. A investigação desenvolvida por esta equipa, explica aquela instituição em comunicado, focou-se em particular no estudo de determinadas famílias de genes que permitem explicar, por exemplo, como as aves evoluíram para ter um esqueleto mais leve, visão a cores, padrões de coloração das penas, diversificação do olfacto, do gosto, da imunidade e da resistência a doenças ou da reprodução.
Já se sabia que o ADN das aves é muito mais pequeno do que o dos mamíferos (um terço do tamanho). E o consórcio concluiu agora que, ao longo da evolução, o genoma das aves perdeu milhares de genes – muitos deles essenciais para a sobrevivência dos mamíferos. A natureza terá portanto “arranjado” soluções alternativas e talvez seja por isso, especulam, que as aves perderam os seus dentes, ou que muitas espécies de aves só possuem um ovário – ou ainda que os seus ossos são ocos e leves, permitindo o voo, e que o seu sistema respiratório muito especial.
“Muitos desses genes [perdidos pelas aves] têm funções essenciais nos seres humanos, por exemplo na reprodução, na formação do esqueleto e no sistema pulmonar”, diz Agostinho Antunes, citado no comunicado do CIIMAR. “A perda desses genes-chave pode ter tido um efeito significativo sobre a evolução de muitos fenótipos [características físicas] distintos das aves. Esta é uma descoberta entusiasmante, muito diferente do que as pessoas habitualmente pensam, que é que a inovação é normalmente criada [pelo aparecimento de] novo material genético e não pela sua perda. ”
Aprender a cantar
O consórcio espera esclarecer esta e muitas outras questões. Para isso, tenciona colocar em breve os seus dados online e torná-los acessíveis gratuitamente aos cientistas do mundo inteiro. Mas não apenas aos especialistas das aves: “Os métodos que foram desenvolvidos para analisar os dados das aves são imediatamente utilizáveis com qualquer conjunto de dados filogenéticos e vamos usá-los para a analisar insectos, mamíferos – e até plantas”, frisou Tandy Warnow. “Estamos a sequenciar mais genomas de aves e vamos continuar a trabalhar em consórcio e também com outras equipas”, acrescentou Jarvis. Será que também vai ser preciso rescrever a história evolutiva desses animais?
Os novos resultados poderão mesmo ter implicações inovadoras em termos de saúde humana, mais precisamente no estudo das perturbações da fala no ser humano. Um dos artigos publicados na Science põe em evidência um conjunto de 50 genes que apresentam padrões de actividade semelhantes no cérebro das aves de canto e dos humanos – mas não no cérebro das aves que não cantam e dos primatas não humanos que não falam, lê-se num comunicado da Universidade Duke. Trata-se de genes envolvidos na formação de novas ligações entre neurónios do córtex motor e neurónios que controlam os músculos que produzem sons.
“Esses genes estão presentes nos genomas de todas as espécies, mas a sua actividade é muito mais alta (ou mais baixa) nas regiões cerebrais especializadas na aprendizagem do canto ou da fala nas aves e nos humanos”, frisa Jarvis, especialista do canto das aves e líder desta vertente do trabalho. “O que isso me sugere é que quando se dá a evolução da aprendizagem da fala [numa espécie], talvez só exista um número limitado de opções em termos da evolução dos circuitos cerebrais necessários.” Seja como for, a existência dessas semelhanças a nível genético, acrescenta, significa que as aves de canto poderão ser um bom modelo experimental para estudar a genética dos problemas da fala em humanos.
Last but not least, os genomas das aves também foram comparados com os de crocodilos, aligatores e gaviais ("crocodilinos" da Índia e Birmânia), os parentes vivos mais próximos das aves actuais. E como as aves e estes répteis pertencem ao mesmo grupo filogenético que os dinossauros, foi possível vislumbrar o genoma do antepassado dos dinossauros que se extinguiram há 66 milhões de anos.