O génio de Chaplin
O superlativo génio de Chaplin chega para o Natal, com O Garoto de Charlot e A Quimera do Ouro, mas devia ser coisa para todo o ano.
Poucas coisas servem melhor para lavar os olhos do que o regresso a esta obra essencial, de onde se não vem tudo vem quase tudo, e voltada para o essencial: um olhar sobre a humanidade, concentrada (até dado ponto) na figura de Charlot, e dada em todas as suas contradições, sentimental e maldosa, cruel e altruísta, violenta e pacífica, temente e revoltada. O Homem no cinema é, muito possivelmente, Charlot.
E são os dois primeiros Charlots longos que agora voltam à sala. Depois de vários anos a dirigir e a interpretar “shorts”, Chaplin quis passar aos filmes de longa duração, um pouco contra a opinião de toda a gente que, na época, via a longa-metragem como um formato dado à narrativa dramática e o filmes de uma ou duas bobinas como o território de eleição da comédia. Chaplin, para O Garoto de Charlot (1921) intuiu que a longa-metragem, e sobretudo a comédia de longa-metragem, precisava de outra respiração e de outros condimentos que não se limitassem ao “slapstick” rápido, curto e feroz da maior parte dos seus filmes até então. Embora já houvesse sinais dele nalgumas curtas anteriores, é com O Garoto de Charlot que se inaugura, em grande, o chamado, e tantas vezes tão mal entendido, “sentimentalismo” chapliniano, que viria a ter o seu zénite nesse filme inacreditável que é Luzes da Cidade. Encontramos então – no garoto que desperta o instinto paternal e protector de Charlot – a primeira e completa “humanização” da personagem, mesmo que a relação entre os dois exista num meio tão selvático (onde os pobres são vítimas dos outros pobres e vítimas dos ricos) como o descrito pela norma chapliniana – homem que nunca esqueceu, mesmo podre de rico, a miséria da sua infância londrina: o Garoto tem, de resto, algumas das mais célebres cenas de pancadaria geral da obra de Chaplin. É um clássico luminoso, autêntico ícone do cinema americano, ainda hoje capaz de pôr uma plateia a passar do riso ao choro sem perceber como.
A Quimera do Ouro, feito em 1925, regressa à figura de Charlot depois de um intróito (A Woman of Paris, de 1923) em que Chaplin se tentou livrar dela, operação que resultou num filme genial mas à época incompreendido. O tema de A Quimera do Ouro – o ouro, o dinheiro, a cupidez – baseia-se nas clássicas “corridas” que levaram às mais inóspitas regiões da América do Norte multidões à procura de um filão que lhes desse fortuna, no caso a região do Klondike, na fronteira gelada entre o Alaska e o norte do Canadá. Se não faltam os elementos tradicionais dos filmes de Chaplin (os “brutos”, o “interesse romântico”), é pelo cenário e pela relação com ele um filme bastante peculiar, e porventura – na questão da “proeza física” – o filme de Chaplin que mais directamente “compete” com o cinema físico e maquinalmente cronometrado de Buster Keaton, então o único rival à sua altura. Um cinema sem “batota”, ou onde a “batota” era mantida a um nível mínimo: é por isso, que na celebérrima cena do jantar (quando Charlot cozinha, e come, um par de botas), Chaplin está mesmo a comer botas (feitas de material especial, mas botas). Com a ironia acrescida, e totalmente pensada, de num filme sobre o “ouro” as imagens mais fortes sejam, afinal, as desta refeição de miséria absoluta.
O superlativo génio de Chaplin chega para o Natal, mas devia ser coisa para todo o ano.