Foi o Holocausto um fenómeno marginal nos países neutros?
O Holocausto não foi, de forma alguma, um mero capítulo da II Guerra Mundial. Foi, na verdade, um acontecimento determinante na história europeia.
Portugal esteve representado, pela primeira vez, num forum académico internacional que debateu um dos episódios mais trágicos da história contemporânea – a atitude dos países europeus neutros face ao massacre dos judeus pelos nazis. Este encontro reflectiu, na verdade, uma mudança ocorrida nas últimas décadas na própria historiografia, cujo paradigma se estendeu do “epicentro” do Holocausto para a “periferia”, isto é, para aqueles países que durante muito tempo foram vistos como meros “espectadores”. Um dos oradores questinou mesmo se foi possível ser-se neutro perante um genocídio (Paul Levine).
As palavras “similariedade”, apesar das diferenças, e “ambiguidade” foram, talvez, as mais utilizadas ao longo dos três dias. Uma das principais conclusões a que se chegou foi o facto de a resposta à perseguição movida pelo regime Nacional-Socialista ter sido similar em todos estes países. Todos optaram por adoptar medidas restritivas, fechando as fronteiras aos que tentavam salvar-se, sob o pretexto de que os refugiados poderiam perturbar o mercado de trabalho interno ou, até, pôr em perigo a homogeneidade nacional. E até os documentos oficiais reflectem esta semelhança ao utilizarem termos como “indesejáveis” para classificar os judeus. Análoga foi, ainda, a resposta ao ultimato alemão de repatriamento dos judeus, em 1943/1944, e o ajustamento da política fronteiriça de acordo com a evolução da guerra.
Terá sido o grau de conhecimento e de compreensão dos factos factores que condicionaram a resposta e posição dos países neutros? De facto, não era possível prever o que iria acontecer depois da invasão da União Soviética, em Junho de 1941, dado que o chamado Holocausto – ou Shoah – se tratou, como o historiador Yehuda Bauer demonstrou, de um genocído não planeado, que evoluiu por etapas e teve a sua expressão máxima, no Leste europeu, a partir de final de 1941. Se até então a discriminação, emigração/expulsão dos judeus (e “arianização” da sua propriedade) eram centrais na política nazi, e era uma solução possível, embora cada vez mais difícil devido aos entraves colocados pelos nazis e à própria guerra, a partir de final de 1942 e ao longo de 1943, tornou-se cada vez mais claro o que estava a acontecer no Leste da Europa. No entanto, o mesmo Yehuda Bauer chamou a atenção para o facto de o genocídio nazi dos judeus não ter tido precedente e de que, apesar de os países aliados e neutros terem obtido algumas informações sobre o que se passava na Europa de Leste ocupada, se tem de fazer uma distinção entre informação e conhecimento, sendo este último fundamental para a tomada de uma acção.
Outros factores equacionados pelo investigadores presentes foram o regime político (democracia/ditadura) dos países neutros, a proximidade/distanciamento ideológico face ao Nacional-Socialismo, o peso da opinião pública, a existência de anti-semitismo individual e/ou estatal, a questão da soberania nacional ou, entre outros, o desfecho da guerra.
Ficou claro que o Holocausto não foi, de forma alguma, um mero capítulo da II Guerra Mundial. Foi, na verdade, um acontecimento determinante na história europeia. Para alguns países, como a Suécia, tornou-se numa memória essencial para a própria integração na Europa. Mas, além de ser um facto da história europeia, foi ainda um facto da história da Humanidade e uma questão ética da humanidade. Isto explica a necessidade de apostar no seu ensino, que é tanto mais premente quando se assiste na Europa à ascensão de uma nova extrema-direita, ao recrudescimento da xenofobia e do anti-semitismo, bem como à banalização do Holocausto devido ao conflito israelo-palestiniano. A abordagem do tema no ensino básico e secundário ajudará – como foi sublinhado num dos últimos painéis sobre a sua memória e educação nos países neutros – a uma reflexão mais ampla sobre racismo, democracia – tão frágil –, direitos humanos ou sobre o papel da história e da memória na construção de uma educação para a cidadania.
Que obstáculos enfrentam os professores nos países neutros? Um dos desafios consiste no facto de se estar a ensinar sobre algo que não teve lugar no interior das suas fronteiras, não existindo mesmo “lugares de memória”, como os campos. Outros países, onde a transição pacífica para a democracia – como foi o caso de Espanha – não conduziu a uma confrontação com a memória, é ainda necessário lidar com o legado da ditadura e enfrentar, com honestidade, o passado (Marta Simó). Este é o caso da Espanha, onde o regime Franquista apostou na construção da sua própria memória histórica em torno do envolvimento do país na II Guerra Mundial.
No final da conferência houve ainda oportunidade para reflectir sobre o futuro da investigação sobre o Holocausto, realçando-se a necessidade de incorporar na agenda historiográfica destes países uma abordagem comparativa, promovendo-se projectos conjuntos, bilaterais, especialmente entre Portugal e Espanha. Esta necessidade traduz-se, no caso português, num continuado esforço por parte da historiografia nacional em trilhar o seu caminho, contando com o apoio das instituições científicas nacionais e da própria sociedade civil. Finalmente, observou-se que, se a Historiografia sobre o tema em Portugal já é assinalável, o País ainda só tem um estatuto de observador, a par da Bulgária, Macedónia e Turquia, na Aliança Internacional de Memória do Holocausto (International Holocaust Remembrance Alliance- IHRA), que teve o seu segundo plenário semi-anual, entre 1 e 4 de Dezembro de 2014, em Manchester.
Cláudia Ninhos e Irene Flunser Pimentel
Historiadoras e autoras de Portugal, Salazar e o Holocausto, 2013