“Como o assédio sexual começa tão cedo, pensa-se que isso faz parte de se ser mulher”
Há uma plataforma online onde mulheres de todo o mundo podem desabafar e contar as histórias de sexismo corriqueiro a assédio mais traumático.
Devem ser poucas as mulheres que nunca foram assediadas na rua, nos transportes, em espaços públicos. De piropos verbais a assobios, de “encostanços” no autocarro a tiradas mais explícitas e agressivas, é algo que começa geralmente cedo na vida e entra no quotidiano a partir daí.
Torna-se um comportamento normalizado, para o qual se pode olhar com indiferença ou nojo, mas que a maior parte das vezes não chega a ser denunciado. Ora, em 2012, a britânica Laura Bates deparou-se com várias situações de assédio num curto período de tempo e foi essa experiência em versão compacta que a fez perceber: “Isto não é normal.”
Os quatro episódios que ela conta podiam ter acontecido a qualquer mulher: um homem com quem se cruzou num autocarro em Londres perseguiu-a, não aceitando um “não” como resposta, “queria ver onde morava”; outro homem mandou-lhe bocas ordinárias na rua; outro fez comentários sobre o seu peito enquanto ela passava pelo carro dele; e outro ainda, num autocarro, começou a tocar nas suas pernas enquanto ela falava ao telefone com a mãe — “afastei-me, olhei à volta e ninguém no autocarro fez nada”, comenta.
Esta sucessão de acontecimentos levou-a a lançar o projecto Everyday Sexism, uma plataforma online (que deu origem depois ao livro com o mesmo título) onde mulheres, mas também homens, denunciam situações de abuso, de discriminação, episódios de sexismo mais vulgares ou cenas mais graves. Falámos com Laura Bates em Londres, em meados de Novembro, num dos intervalos da conferência Trust Women sobre mulheres e sobre escravatura, organizada pela Thomson Reuters Foundation. “Se estes episódios não tivessem acontecido todos de seguida, talvez eu nunca tivesse pensado duas vezes. Fiquei bastante chocada quando percebi isso. Fez-me reflectir em todos os episódios ao longo de anos nos quais nunca tinha pensado porque faziam parte da vida, de se ser mulher. E quanto mais falava com mulheres e raparigas mais percebia quão horríveis eram essas histórias e quantas tinham passado pelo mesmo. Eu própria nunca tinha falado sobre isso.”
Decidiu assim criar um espaço onde todos pudessem desabafar, contar as suas histórias, até porque de cada vez que abordava o tema sentia que “as pessoas não ouviam, não queriam saber”, e que estava perante “um problema invisível”, “havia uma negação a larga escala”.
O site permite uma compilação em massa de várias histórias, em várias partes do mundo, reforçando a imagem de que é um fenómeno global e que, independentemente da cultura, se expressa de forma semelhante. Numa barra do site, há 18 bandeiras que ligam a páginas de diferentes países e têm testemunhos escritos nas respectivas línguas.
Apesar de ter a bandeira de Portugal e do Brasil, as histórias que aparecem em ambas as “bandeiras” estão escritas em português do Brasil, o que faz pensar que em Portugal, onde aparece apenas um relato, ainda não houve quem tomasse conta da gestão — Laura Bates não sabia responder quem estava à frente da parte portuguesa porque a ideia é as versões locais funcionarem por si só, sem terem necessariamente a sua intervenção.
Do Brasil, lemos: “Os meus relatos são vários, nenhum mais especial que o outro, mas todos muitos traumáticos. O que me irrita não são os incidentes por que já passei, mas sim o medo constante e a insegurança de andar na rua. Quando fiz 12 anos, comecei a andar de ônibus sozinha e a primeira dica que todos me deram foi como me vestir, cena que vi repetir-se com a minha irmã mais nova. Mas até hoje paro e penso: por que tenho que mudar a forma como me visto para que não sofra com assédio? É como se a culpa fosse nossa!” “Mulher” (nome fictício), também brasileira: “Ser mulher é uma luta diária. Ando na rua e não me sinto em paz, parece que a rua é dos homens. Não existe um momento em que me sinto à vontade nos espaços sociais. Sempre me sinto ameaçada. Lembro bem de como isso começou. Quando tinha 10 anos, tinha recém-menstruado, e meu corpo começara a mudar, levei a minha primeira ‘cantada’ na rua: feita por um homem mais velho, vizinho do bairro. Ele disse: ‘Que peitinhos gostosos, tá linda heim.’ Tudo que eu fiz foi correr.”
De Espanha: “Já aconteceu mais do que duas vezes, estou farta. Um dia ia a passear com o meu primo saindo de um restaurante e tinha um vestido com as costas mais descobertas do que o normal quando um homem de uns 25 anos mais ou menos passa ao nosso lado de carro e reduz a velocidade para me olhar de trás. A segunda vez foi um dia que ia a andar com uma amiga, ela e eu tínhamos calções curtos, e um homem no seu carro pára no semáforo e sinto que nos despe com o seu olhar. Sinceramente, tenho 15 anos e sexualizam o meu corpo, não é a minha culpa e não estou a tentar chamar a atenção. Estou cansada de me sentir incomodada de cada vez que uso um vestido ou calções curtos, isto tem que parar já.” Pablo, homem, espanhol: “Na semana passada acompanhei uma amiga a um centro de beleza (...). Como nunca gostei muito das minhas sobrancelhas e a minha amiga sabe, ofereceu-me um arranjo de sobrancelhas e fiquei supercontente com o resultado. Ao chegar a casa, a minha mãe percebeu e achou que me ficava lindamente, mas o meu pai nem notou. Quando percebeu, gritou e ralhou-me muito porque andava a fazer coisas de mulher e ele tinha-me educado para ser homem. Por acaso, como homem, não me posso preocupar com a imagem?”
No princípio, o objectivo do site era apenas despertar consciências, mostrar que o sexismo existe e como é que acontece. Nasceu da necessidade de desconstruir o que se tornou normalizado porque é “incrivelmente comum”, comenta Laura Bates. “A reacção dos outros tem um grande impacto nas nossas percepções. Se as pessoas reagem com choque, nojo ou protesto, então recebemos a mensagem de que é mau. Mas o assédio na rua é tão regularmente ignorado, e tão poucas pessoas param ou ajudam, que isso envia uma mensagem muito forte às mulheres: ‘Isto não tem problema, não façam barulho à volta disso. Depois, como o assédio começa tão cedo, muitas vezes quando ainda se usa a farda da escola, torna-se um padrão absorvido, pensa-se que isso faz parte de se ser mulher. E é só quando alguém nos faz pensar em quão horrível é que reflectimos — tantas de nós habituámo-nos a isso…”
Everyday Sexism foi crescendo muito mais do que aquilo que Laura estava à espera. Hoje ela quer pensar que cada país envolvido pode recorrer aos depoimentos para influenciar políticas públicas, como acontece no Reino Unido. Por exemplo, ela usa os testemunhos sobre mulheres no local de trabalho para os mostrar a políticos que estão a trabalhar em dossiers sobre as desigualdades entre homens e mulheres, “ajudamo-los a perceber que mudanças precisam de ser feitas”. Ou agarra nas entradas sobre mulheres alvo de assédio sexual nos transportes públicos para guiar os Transportes de Londres no treino de uma equipa de polícias — isto já ajudou a aumentar em 25% as denúncias de assédio sexual, diz Laura Bates.
Há de depoimentos mais longos e mais traumáticos a mais curtos e mais simples, como este, de “T”, do Reino Unido: “Detesto a forma como, quando fico ofendida com comentários na rua, como ‘és sexy’ ou ‘anda para casa comigo esta noite’ ou apenas um rugido, os homens não percebem porque é que me zango, acham que me deveria sentir lisonjeada por ter recebido um elogio.”
Até agora, dois temas se destacam nas denúncias online, descreve Laura Bates: assédio sexual e/ou discriminação no trabalho e assédio e/ou abuso nos transportes públicos. “O local de trabalho e a esfera pública são o cenário da maioria das queixas, o que é interessante porque muitas vezes as pessoas têm relutância em aceitar que o problema está ali, no local de trabalho — e na verdade é um problema muito escondido, porque as mulheres têm medo de perder o emprego, etc. As queixas variam muito: das entrevistas onde se pergunta sobre maternidade a mulheres que são discriminadas e postas na prateleira porque planeiam ter filhos até assédio sexual no local de trabalho. Temos a descrição de uma mulher na City [a zona financeira de Londres] a quem foi dito que tinha de se sentar ao colo do patrão se quisesse o bónus de Natal ou a de uma mulher que trabalhava num bar e de cada vez que pegava em copos com as duas mãos o patrão vinha e agarrava-lhe nos peitos.”
As cenas acontecem em todo o lado, em vários espaços públicos, mas os transportes são um clássico, diz Laura Bates. Lendo os depoimentos, é, de facto, um dos cenários mais recorrentes. Rebecca, do Reino Unido, conta: “Quando tinha 14/15 anos, estava num comboio a caminho de casa da escola. Era dia de não usar farda e estava com um vestido que a minha mãe me tinha comprado. A outra rapariga com quem estava saiu do comboio e eu fiquei rodeada de um grupo de rapazes que cantava: ‘Põe as tuas mamas de fora.’ A carruagem estava cheia de homens de negócios, mas ninguém fez nada. Saí na estação seguinte lavada em lágrimas e tive de ligar à minha mãe para me vir buscar. Nunca mais usei aquele vestido.”
Laura Bates explica que nos transportes públicos o problema agrava-se porque há uma sensação de transitoriedade e os perpetradores sentem-se seguros: “Podem agarrar, assediar e sair na estação seguinte.” Na maioria das vezes, há muita gente, o metro ou o autocarro estão cheios, o que transmite a sensação de impunidade: “Sentem que podem tocar nas mulheres e ninguém os ver.” Depois, as mulheres não sabem a quem recorrer, como denunciar. E é por isso que fizeram uma campanha nos transportes para incentivar a denúncia: “Se funcionar bem, ajudará a acabar com esta normalização”, diz.
Numa das suas intervenções na conferência, Laura afirmou que há soluções fáceis e baratas para combater o assédio sexual nos transportes e na rua e é isso que tem defendido junto às entidades competentes. Exemplos: ter melhor iluminação na rua, maior regularidade de transportes à noite ou nas alturas do dia em que é mais comum as mulheres viajarem sozinhas, colocar CCTV em pontos estratégicos, “o que permite tirar imagens dos perpetradores em acção”.
Despertar consciências desde cedo é, porém, uma das medidas mais eficazes, acredita. Até porque muitas vezes as jovens têm medo de denunciar. “Temos de educar as pessoas nas escolas sobre os seus direitos, sobre o facto de ninguém ter o direito de as assediar, de as tocar sem o seu consentimento. Havia uma rapariga [no site] que dizia que quando um homem começou a mexer-lhe nas pernas no autocarro ela não disse nada porque não queria fazer barulho. E isto vai ao cerne do problema: devemos ensinar as raparigas a falar, a denunciar. Ensinamo-las a ser bem-educadas, mas não lhes ensinamos que têm o direito de contestar, de ter controlo sobre os seus próprios corpos. Muito disto poderia melhorar com o ensino na escola sobre respeito, direitos pessoais, consentimento sexual e relações saudáveis.”
A esta altura, ainda não sabe qual é a diferença entre assédio sexual e elogio? Laura Bates explica: “A diferença crucial é a expectativa sobre o resultado. Se alguém faz um elogio a uma pessoa com quem está a conversar, então há uma expectativa legítima de que a pessoa vai gostar. Mas se se gritar a alguém, ou chamar a atenção, há uma linguagem corporal das mulheres muito clara quando querem que as deixem em paz: viram as costas, não respondem, muitas vezes põem os auscultadores para ouvir música, lêem um livro ou fazem outro tipo de gestos que indicam que os querem ignorar. Nas situações em que há abuso, as pessoas ignoram os sinais que são enviados e continuam a insistir.”