Malária pode ser derrotada com a ajuda de bactérias dos intestinos
Cientistas portugueses mostram pela primeira vez que o microbioma dos mamíferos ajuda na resposta imunitária contra outras doenças. Mecanismo ?pode ser aproveitado para fabricar uma vacina contra a malária.
A equipa conseguiu descrever o mecanismo desta ligação, mostrando pela primeira vez que o microbioma, os microrganismos que vivem em mamíferos, influencia e pode ajudar o seu sistema imunitário na luta contra outras doenças. Ao mesmo tempo, os cientistas propõem uma vacina para a malária, usando este método. O trabalho, que teve ainda a participação de investigadores do Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade Nova de Lisboa e do Instituto Nacional de Doenças Infecciosas e Alergias dos Estados Unidos (NIAID, em inglês), foi publicado na quinta-feira na revista científica Cell. Está na hora da garrafa de champanhe sair do frigorífico.
“É brutal. A interacção e a co-evolução dos humanos com este microbioma criou uma relação com ele que nos protege contra outro microrganismo”, diz Miguel Soares.
Havia vários sinais que sugeriam esta ligação. Um deles é a forma como a malária afecta principalmente as crianças com menos de cinco anos. Dizia-se que isso se devia ao facto de o sistema imunitário ainda não estar bem desenvolvido nas crianças. E ano após ano, a doença continua a matar. Só em 2012, morreram 460.000 crianças africanas devido à doença, segundo a Organização Mundial da Saúde.
O ciclo do parasita da malária é complexo. O Plasmodium falciparum, a mais letal das espécies de Plasmodium que causam a doença em humanos, é transmitido pelo mosquito Anopheles gambiae. Quando este insecto pica, os parasitas saltam das glândulas salivares do mosquito e penetram na derme humana. Depois, procuram um vaso sanguíneo para chegarem ao fígado. Neste órgão, penetram numas quantas células até se instalarem e multiplicarem-se.
Até aqui, quem é picado não apresenta nenhum sintoma. Mas depois de se libertar do fígado, o Plasmodium falciparum, já numa nova forma, infecta e multiplica-se nos glóbulos vermelhos. Ao saírem destas células, os parasitas rebentam com os glóbulos vermelhos e os seus detritos causam os sintomas da malária: febres altas, dores no corpo e de cabeça. Por fim, alguns destes parasitas mudam de forma mais uma vez e, se forem sugados por um mosquito Anopheles, podem recomeçar a transmissão.
Contra este ciclo infernal só existem medicamentos para matar o parasita. Não há vacinas eficazes, apesar das muitas tentativas ao longo das últimas décadas.
A equipa de Miguel Soares foi estudar um grupo de anticorpos produzidos em grande quantidade pelo sistema imunitário dos humanos — 5% de todos os anticorpos. Estes anticorpos ligam-se ao alfa-gal — um açúcar produzido tanto na parede celular das bactérias, como em células de alguns mamíferos (como os ratinhos e os porcos), e que também aparece na membrana dos parasitas da malária no momento da picada dos mosquitos.
Os anticorpos contra o alfa-gal surgem naturalmente nos humanos. Suspeitava-se que eram produzidos devido à existência de certas bactérias nos intestinos que, ao interagirem com o sistema imunitário nos primeiros anos de vida das crianças, o obrigavam a isso.
“Sabemos que esses anticorpos são altamente violentos porque, se pusermos uma célula na nossa circulação que expresse [produza] esse açúcar, estes anticorpos matam a célula em dois minutos”, dizia-nos Miguel Soares em 2010.
Com todos estes dados, os cientistas foram ver, por um lado, se este tipo de mecanismo protegia ratinhos contra a malária e, por outro, foram investigar a ligação entre este anticorpo e a malária em populações humanas em Bamaco, no Mali.
Em África, o grupo de Peter Crompton, do NIAID, analisou a existência destes anticorpos em populações de crianças e adultos. Os cientistas descobriram que os indivíduos com mais níveis de anticorpos eram menos susceptíveis ao Plasmodium falciparum. Por outro lado, as crianças com menos de três anos tinham baixos níveis dos anticorpos, o que poderá ser uma razão para serem mais susceptíveis à malária, segundo Miguel Soares.
Uma vacina feita de açúcar?
Em Portugal, a equipa de Miguel Soares usou ratinhos geneticamente modificados para que as suas células não produzissem o alfa-gal. Depois, adicionou-se ao microbioma dos ratinhos estirpes de bactérias, como da Escherichia coli, que produzem o alfa-gal. Por fim, os cientistas verificaram que estes ratinhos adquiriam os anticorpos contra o açúcar e, quando eram infectados com o Plasmodium berghei (que causa a malária nos roedores), ficavam menos susceptíveis a contrair a doença.
A janela de actuação dos anticorpos é, no entanto, pequena. “O mosquito vai espetando a ‘agulha’ até encontrar um vaso sanguíneo. E nesse processo vai largando os parasitas na derme”, descreve Miguel Soares. Enquanto os parasitas não chegam aos vasos sanguíneos para se dirigirem ao fígado, estão vulneráveis.
“É neste período de tempo que os anticorpos necessitam de sair da circulação sanguínea e entrar em contacto com o parasita”, acrescentou. Quando o fazem e se ligam ao açúcar na membrana do parasita, recrutam um pacote de proteínas que rebenta com o Plasmodium. Mas se entre os parasitas há um que escapa e chega ao fígado, então a infecção instala-se e já não há nada a fazer.
Neste sentido, a melhor resposta obtida pelos cientistas foi quando deram uma vacina a estes ratinhos composta pelo mesmo açúcar (mas sintético) para estimular a produção de anticorpos nos ratinhos, além de um coadjuvante que exacerba a resposta imunitária. “Houve uma redução de 90% da infecção”, diz o cientista.
Miguel Soares acredita que é possível exacerbar a capacidade destes anticorpos para eliminarem totalmente o Plasmodium falciparum em humanos. E lança o repto: “A única coisa que resta fazer agora é testar uma vacina em humano e ver se induz a protecção.”