Qualquer que tenha sido o roteiro, foi dar a Wild Beasts
Os Wild Beasts foram os mais celebrados, Perfume Genius provocou uma enchente e os Sensible Soccers provaram uma vez mais porque são uma banda especial. Histórias da despedida, sábado, do Vodafone Mexefest
Para além deles, destacou-se Perfume Genius, que provocou uma fila imensa à entrada da sala principal do São Jorge, o intimismo desassombrado de Sharon Van Etten, no Coliseu, a festa “kudurada” dos Throes + The Shine ou a intensidade da viagem proporcionada pelos Sensible Soccers.
Entre a azáfama vivida na zona das Portas de Santo Antão, num eixo alargado, Avenida da Liberdade acima, até ao cinema São Jorge, ou, Avenida da Liberdade abaixo, até à estação do Rossio, mais houve para reencontrar, descobrir, dançar ou celebrar. Avenida acima e avenida abaixo, gente de olhos postos nos horários dos concertos, tentando definir um roteiro que, inevitavelmente, será várias vezes alterado ao longo da noite – porque para aquele concerto indispensável há uma fila de espera desmotivadora, porque alguém sugeriu aquela outra banda que não se deve mesmo perder e lá vamos nós à descoberta.
É essa a dinâmica deste festival (deixar-se ir numa das várias correntes) e o público já está perfeitamente identificado com esse, digamos, sobressalto animado. Tem perfeita consciência que há muito para ver e tão pouco tempo, mas põe a angústia de lado. “E se fôssemos agora ao autocarro? Ainda não ouvimos a banda”, sugeria alguém, terminados os Wild Beasts, enquanto o autocarro, um dos dois que transportou o público pela avenida, passava perante o olhar curioso de alguns turistas, alertados pela chinfrineira rock’n’roll que se desenrolava lá dentro (o autocarro foi, durante toda a noite, o palco dos Zanibar Aliens).
É certo, assim sendo, que saímos sempre do Vodafone Mexefest conscientes que algo se perdeu. Enquanto não desenvolvermos o dom da ubiquidade, será inevitável. Funciona portanto assim: um amigo elogia a energia do concerto dos Cloud Nothings no ginásio do Ateneu Comercial de Lisboa, nós replicamos com o óptimo concerto que os Sensible Soccers davam à mesma hora. Outro fala-nos das qualidades dos ingleses Palma Violets e da forma como subiram o volume do som para níveis quase proibitivos na Estação Ferroviária do Rossio, nós contamos que há um travo clássico de singer-songwriter americano a sobressair agora em Perfume Genius. A cada um o seu roteiro de música.
Uma das qualidades de um festival como o Vodafone Mexefest não é, porém, estritamente musical. Nasce da possibilidade de, por um par de dias, termos acesso a espaços na cidade habitualmente escondidos. Foi num deles, na garagem EPAL (e é exactamente isso, uma garagem com passagem para um pátio interior), que ouvimos os Sensible Soccers. A banda de Vila do Conde e São João da Madeira, autora de 8, álbum de destaque neste ano discográfico, ultrapassou problemas técnicos – dica para bandas a lidar com questões semelhantes: quando nada parece funcionar, improvisa-se um pouco de rock tuaregue e tudo correrá pelo melhor – e transformou o espaço muito bem recheado de público entusiasta num festim de psicadelismo planante e ritmo electrónico para pista de dança mutante.
Donos de uma intuição musical inspiradora, conseguem ser, à uma, cuidadosos artesãos de filigrana sonora e criadores de turbilhões sónicos envolventes – da galáxia Harmonia a nebulosas shoegaze, de viagens interestelares "floydianas" ao ataque muito físico do techno. Sofrendo por você é o título da canção mais célebre da banda. Generosos, fizeram exactamente isso. Sofreram (com os irritantes problemas técnicos) para que dançássemos depois.
Nessa altura já víramos os portuenses Throes + The Shine, no Salão Nobre do Ateneu, fazer o que fazem habitualmente: guitarras eléctricas em riffs distorcidos ou possuídas por espíritos ganeses, bateria infernal e dois MCs a disparar palavras ao ritmo daquele kuduro que é muito rock’n’roll. Cenário curioso: um lustre gigante pendendo frente ao palco e o tecto muito ornamentado com querubins em baixo relevo a servir de cenário a música onde ginga africana e visceralidade punk se encontram para nosso prazer. “Pessoal, vocês vieram para o chá das cinco ou quê?”, provocará a banda. Não, o pessoal não tinha vindo para isso – como os inocentes querubins testemunhariam pouco depois.
No dia em que Curtis Harding apresentou o seu Soul Power ao público português na Estação do Rossio (no seu som há mais blues e rock de garagem que soul propriamente dita; há, essencialmente, uma promessa de algo interessante, mas ainda por cumprir), as atenções centraram-se, primeiro, em Sharon Van Etten. A cantora de New Jersey, guitarra a tiracolo, encantou na penumbra em que a deixou a iluminação de palco, fazendo da tradição musical americana, estendida da folk a força expressiva de Patti Smith, com desvio para a Inglaterra de PJ Harvey, a moldura para a catarse dos mais diversos inconfessáveis – o amor, sempre o amor e a dor que o amor e a vida provocam.
Acompanhada de baixo, teclas, guitarra e bateria, dedicou o concerto ao último Are We There. Surpreendeu-se com a rapariga na fila da frente com o seu nome escrito na cara (“nunca tinha visto isto”) e foi mulher bem-humorada entre canções. Quando elas se faziam ouvir, o humor, quando existia, era de outro tipo. "Everytime the sun comes up / I’m in trouble”, canta no final, na sua voz de uma eloquente expressividade dramática. Não fosse a letra e seria canção para alpendre em final de tarde bucólico. Ouvindo a letra embalados pela música, percebe-se que esta é a serenidade de quem aceitou a convulsão como uma constante do correr dos dias. E é daí que nasce a música tão terna quanto tensa de Sharon Van Etten.
De certa forma, Van Etten não está tão distante quanto pensaríamos de Perfume Genius, o nome pelo qual assina o também americano Mike Hadreas. No Vodafone Mexefest, confirmou-se que é um fenómeno junto do público português. A sala Manoel de Oliveira do São Jorge transbordou para o receber, camisa de negro transparente sobre o torso, batom vermelho vivo nos lábios, botas de preto brilhante com tacão alto nos pés.
Com Too Bright, o cantor de Seattle aproximou-se decisivamente das raízes da sua música – ele que fala bastante de Nina Simone e, consequentemente, da soul e do gospel dessa divina cantora. Hadreas é agora um músico mais clássico, mais próximo do formato clássico de canção. Um cantor moderno à antiga, digamos assim. Naquele que foi o último concerto da sua actual digressão,alternou. Ora se sentou ao piano (chegou a tocá-lo a quatro mãos com o seu teclista) e deixou a voz guiá-lo em tom confessional, ora se ergueu para cantar e pontuar os versos com dança ondulante. Sobressaiu no concerto, assistido por um público atento e conhecedor, a capacidade que tem, agora, de pôr a sua voz capaz de vários malabarismos ao serviço da canção. Percebemo-lo em temas dos álbuns anteriores, como Sister song, do segundo, Put Your Back N 2 It, ou Learning, da estreia homónima.
No concerto, até podem surgir sintetizadores vaporosos e uma languidez que associaríamos a Sade, mas é a intimidade provocada por esta música despojada de elementos, totalmente centrada no homem exposto no centro do palco (e no coração das canções), que mais cativa o público. Curiosamente, seria a pop exuberante de Queen, de Too Bright (apontamento de piano apontando a Oriente, sobre um tapete de sintetizador), a encerrar o concerto.
Se Perfume Genius provocou uma enchente no São Jorge, os Wild Beasts foram dominantes num Coliseu repleto. De certa maneira, a banda britânica é uma banda deste festival. Tinham sido surpresa no São Jorge quando da passagem anterior por Lisboa, quando o Vodafone Mexefest se chamava ainda Super Bock em Stock. No sábado, não houve espaço para surpresas. Erguem um copo de tinto para brindar ao público, atacam, já em encore, a propulsora Wanderlust – bom verso: “don’t confuse me with someone who gives a fuck” –, e o público na plateia, nos camarotes, nos balcões, solta palmas, ergue telemóveis para registar o momento, acompanha com atenção as canções a meio caminho entre o sintético 80s e a grandiloquência pop do pós Arcade Fire que se ouve em Present Tense, o último álbum.
Nada efusivos em palco, sempre concentrados nas texturas sonoras criadas, são uma banda rock totalmente do seu tempo. Têm uma genealogia múltipla onde convivem Arcade Fire, Efterklang, Depeche Mode ou algo dos Radiohead. São pop melancólica com secção rítmica agitada e são synth-pop mais séria que lúdica. Não surpreendem, nem se mostram autores de canções imaculadas. São muito sérios na apresentação da síntese que atingiram e tocaram um qualquer nervo do público português, que acompanhou muito atentamente, com ocasionais demonstrações de euforia (soltem-se umas palmas a compasso), canções como Mecca ou Hooting. Se dúvidas houvesse, o concerto desfê-las. Os Wild Beasts já são da casa.
Quando terminaram recordávamos ainda a aparição de Duquesa, ou seja Nuno Rodrigues, vocalista dos Glockenwise, na sala Montepio do São Jorge, onde horas antes mostrara uma vez mais ser autor de algumas das canções mais solares e cativantes que este ano nos trouxe. Quando eles terminaram, enquanto a chuva caía sobre o público que abandonava o Coliseu, essa memória esperava ainda outras para se lhes juntarem.
Regressar ao Coliseu para dançar o que os peruanos Dengue Dengue Dengue ou Branko, dos Buraka Som Sistema, tinham para oferecer? Subir ao Palácio Foz para apreciar os seus belíssimos interiores ao som de Thunder & Co? Mais uma escolha. A última das muitas de que, uma vez mais, se fez o Vodafone Mexefest, este ano numa edição em que, além dos nomes aqui referidos se destacaram, sexta-feira, Kindness, St. Vincent, Capicua e Tune-Yards.
Corrigido às 9h26: Sofrendo por você é o título correcto da canção dos Sensible Soccers referida