A visceral St. Vincent e o folião Kindness na noite delas

Espaços repletos e muita gente a circular pela Avenida, na primeira noite de Vodafone Mexefest, com concertos marcantes de St. Vincent, Kindness, Capícua ou Tune-Yards. O festival termina este sábado.

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Kindness Miguel Manso
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Tune-Yards Miguel Manso
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Ao longo de três edições o Vodafone Mexefest foi assim, com variações na escolha dos locais, e a quarta vez não é excepção. O modelo está consolidado. Está integrado no espírito do público. E revela-se um êxito. Mais uma vez isso se constatou esta sexta na primeira de duas noites de festival, com grande afluência de pessoas.

Os concertos, esses, já se sabe, depende largamente do roteiro individual de cada um. Do que vimos destaque para as prestações de St. Vincent e Kindness, numa noite dominada por mulheres.

Se nas primeiras duas edições o epicentro dos acontecimentos era o meio da Avenida da Liberdade, com concertos no São Jorge e Tivoli, agora é a zona do Coliseu e rua das Portas de Santo Antão que prevalece. Foi por aí que começámos, ao início de noite, com Ana Cláudia, no magnífico espaço da Sociedade de Geografia de Lisboa.

Com apenas um disco recentemente editado, “De Outono”, ainda não tem uma identidade totalmente afirmada, mas os indícios são bons, com uma linguagem que navega algures por uma pop melancólica de contornos electrónicos, mas que assimila subtilezas do jazz, da música brasileira ou até de alguma música de raiz portuguesa.

Acompanhada pelo seu grupo, apresentou uma versão de “João e o Pé de Feijão” de Cícero e uma outra de “All is full of love” de Bjork. A islandesa, ao lado de James Blake, são algumas possíveis portas de entrada para se perceber um pouco do universo de Ana Cláudia. 

Mesmo ali ao lado situa-se outro espaço que apenas recebe concertos por esta ocasião – a Igreja de S. Luís dos Franceses. Espaço pequeno, com longa fila à porta, para ver os suecos JJ, dupla da pop electrónica etérea, com laivos góticos, ajustada ao ambiente litúrgico.

No altar, a acompanhar os dois suecos, com Elin Kastlander na voz, e Joakin Benon na guitarra, um outro músico, em programações e electrónicas. A voz impõe quase sempre um clima introspectivo, quase místico, mas os dinamismos electrónicos e os acordes de guitarra tratam de fazer irradiar o lugar de alguma magia mais terrena.

De seguida, avenida acima, para vermos Capícua num lotado São Jorge, ainda paramos na Garagem Epal, para vermos um pouco das espanholas Deers, música rock escolar, assumidamente verde, de refrões cantaroláveis, ideal para inaugurar um novo lugar do festival.

Já não é novidade. Este ano tem sido bom para Ana Matos, ou seja Capícua. A música e letras do álbum “Sereia Louca” conquistaram definitivamente e a canção “Vayorken” tornou-a transversal, em termos geracionais e musicais, não se cingindo ao mundo do hip-hop.

E a sala repleta do cinema São Jorge prestou-lhe tributo, com Ana Matos a apresentar um espectáculo um pouco mais elaborado do que o habitual, com bailarinas, da dança contemporânea à dança de varão, e alguns convidados, como Gisela João e Aline Frazão.

O resto é com o dispositivo habitual no hip-hop, com um DJ e duas mulheres de microfone em punho, fazendo sair as palavras quase sempre certeiras e límpidas, o que nem sempre é fácil de acontecer.

Há os habituais incentivos à participação popular e uma música que tanto alude à mitologia do hip-hop, como procura subtilmente outros territórios, impondo sempre muito espaço para as palavras saírem, oxigenadas, expressando experiências individuais de apelo colectivo.

Existe nitidamente, hoje em dia, um fenómeno de identificação entre aquilo que Capícua verbaliza e o seu público e isso não é para todos. O final, festivo, como seria de esperar, com “Vayorken”, provou-o.

Outra mulher de corpo inteiro é Merril Garbus, ou seja Tune-Yards. Quando chegámos, já o concerto tinha tido início, a plateia e as laterais do Coliseu estavam à pinha – mais tarde, com St. Vincent, também os balcões foram libertados, mas ficou a ideia que deveriam tê-lo sido antes. A americana e a sua formação não arrebataram, mas fizeram o suficiente para impor uma música de alguma complexidade estrutural, que acaba por manifestar sempre uma energia primordial.

Como tantas outras figuras da música popular, Merril consegue transformar eventuais fragilidades (vocais ou instrumentais) em momentos de superação, graças a uma atitude descomplexada perante a matéria que manipula, numa amálgama de registos vocais (da fúria à doçura) e de elementos de várias tipologias (funk, afrobeat, rock, hip-hop, psicadelismos, jazz ou soul) que desembocam num som marcado pelas percussões e vozes.

Ao longo de três álbuns tem sabido expor um autêntico bordel sónico e ao vivo as canções respiram essa liberdade, com mudanças de temperatura e de direcção desconcertantes. Faltou-lhe, talvez, apenas um pouco mais de nervo, para ser um concerto para recordar.

Uma das surpresas da noite, para muito boa gente, terá sido Kindness. Nós, incluídos. É verdade que já tinha estado em Portugal, mas os concertos que lhe víramos haviam sido menos efusivos e o seu novo álbum é bem inferior à estreia. Havia por isso uma expectativa moderada. Mas a estação ferroviária do Rossio tão depressa não irá esquecer a festa que se gerou entre palco e plateia.

Com quatro endiabrados músicos e duas fantásticas e sensuais cantoras a rodearem-no, o alto e esguio Adam Bainbridge foi o mestre de cerimónias de um concerto totalmente contagiante.

Já se sabia, a música é um composto de funk, "disco", house ou soul que desemboca numa sonoridade pop electrónica que tanto evoca a Nova Iorque dos anos 1970 como a Londres dos anos 1980, sem que no entanto fique refém da memória. Não é que ela não esteja lá, mas é assumida de forma tão descomplexa (em algumas canções nem faltam citações aos Art Of Noise ou a Whitney Houston), que acaba por se diluir no sentido de festa que o colectivo é capaz de proporcionar.

Foi um concerto generoso, de um colectivo de músicos que soube partilhar o melhor da sua vibração, com as duas cantoras de apoio a desempenharem um papel decisivo nesse efeito, acabando o público rendido a uma sessão de funk dançante como não se vê muito por aí. No final Adam Bainbridge saiu de palco e misturou-se com a assistência, enquanto em palco a celebração continuava, num espectáculo que merece nova dose proximamente em Portugal.

O mesmo se aplicando a Anne Clark, ou seja St. Vincent. Já a tínhamos visto várias vezes, mas sempre em contexto de festival ao ar livre. A última das quais, no último Primavera Sound do Porto. Não foi mau, mas num ambiente desse género diluiu-se muito da sua performance.

Perante um Coliseu cheio foi diferente. Foi o melhor concerto que lhe vimos. A americana constituiu um daqueles casos de superação em palco. Os seus discos não conseguem reproduzir o mesmo efeito.

Claro que, por vezes, pode ser desconcertante, ou mesmo bizarra. Há nela uma teatralidade, um assumir do artifício, ao qual a cultura rock, arreigada na mitologia da espontaneidade, nem sempre reage bem.

Mas não foi o caso da noite de sexta. Por vezes parece Prince, outras Jimi Hendrix, ou PJ Harvey, ou outras ainda David Byrne, mas acaba por ser sempre ela, de guitarra em riste, por vezes dulcificada, outras parecendo querer provocar o confronto, fitando-nos, eléctrica.

As canções nem sempre são directas, há desvios sinuosos, rasgos de bateria inesperados, momentos de electrónica desvairada, teclados roufenhos, mas no final existe sempre um sentido preciso que emerge, qualquer coisa de militar, como se os movimentos coreografados a que se entrega tivessem repercussão na música.

Por vezes veio-nos à memória o concerto do ano passado, ali também, das Savages. São coisa diferente. Mas existe o mesmo sentido preciso da urgência, só que no caso de St. Vincent exposto de uma forma mais encenada, futuristicamente estranha. As canções aos vivo respiram esquizofrenia, com os golpes da guitarra a povoarem temas como “Prince Johnny”, “Your lips are red”, “Every tear disappears” ou “I prefer your love”, enquanto ela se contorce, em pé, no chão ou deslizando sobre os braços do público, no final, agarrada ainda à guitarra, uma só entidade, sensual, abrasiva, desconcertante.

Para descomprimir de uma performance tão visceral, só mesmo uma sessão dançante pelos territórios do afro-house ou do kuduro, com os vários cúmplices da editora Príncipe, de Marfox a Nigga Fox, no Ateneu Comercial de Lisboa ou no próprio Coliseu, e foi isso que fizeram muitos, ainda atordoados com o recital de St. Vincent.

O festival termina este sábado com Adult Jazz, Sharon Van Etten, Perfume Genius, Wild Beasts, Branko ou Dengue Dengue Dengue.

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