Fotografia
Um trabalho íntimo da terra
Estamos no tempo das castanhas. Em Trás-os-Montes, este fruto que “ao mesmo tempo alimenta e simboliza”, citando Torga, é mais que um fruto. É um modo de vida, um elo familiar e social, uma forte ligação à terra. É esse mundo que perpassa pelas fotografias de Georges Dussaud, que, uma vez mais, regressou a Portugal para registar um imaginário ancestral, que a sua objectiva abraça com discreta afectividade.
Há imagens assim justas, que se aproximam do trabalho mais íntimo da terra, como a que vemos aqui ao lado: membros certamente de uma mesma família dobram o corpo e deitam mãos à apanha das castanhas. Vivemos o tempo delas — mesmo se Novembro e o São Martinho já passaram —, que prometem continuar a aquecer-nos as mãos durante o Inverno, e em muitas comunidades da Terra Fria Transmontana são ainda o garante de subsistência.
Há o tempo do repouso, da meditação e da espera do transporte; o tempo da partilha — como aquela que brota das mãos generosas e do sorriso feliz de Eugénia; o tempo da refeição e das histórias ao final da jornada. Um tempo que passa com o vagar do gado, o sulco cavado na terra, o cruzeiro a demarcar o caminho sagrado…
É Tempo de Castanhas, título de uma nova exposição em Bragança com trabalhos de Georges Dussaud (n. Brou, Bretanha, 1934), o fotógrafo francês da agência Rapho que, no rasto de Robert Doisneau e Edouard Boubat, deu corpo a uma forma muito peculiar de expressar o humanismo nesta arte. Foi inaugurada no início de Novembro no Centro de Fotografia que tem o seu nome (CFGD) e aí pode ser visitada até 31 de Maio de 2015.
Tempo de Castanhas marca mais um regresso a Portugal de Georges Dussaud, ele que praticamente nunca deixou de cá voltar desde que, com a sua família, no Verão de 1980, pela primeira vez, atravessou a fronteira, no Alentejo. De regresso à Bretanha natal, subiu o país até às Terras do Barroso, que escolheria como o seu lugar de eleição. Pelo tempo adiante, ano a ano, às vezes mesmo estação a estação, foi voltando para fotografar o Douro e Trás-os-Montes — com o privilégio de ter sido guiado por Miguel Torga, num encontro de onde nasceu o seu primeiro livro editado em Portugal, Trás-os-Montes (edição Assírio & Alvim, 1984) —, mas também o Porto e Lisboa, as praias e as comunidades piscatórias do litoral.
Desta vez, no Outono do ano passado, Georges Dussaud foi desafiado a fotografar a apanha das castanhas nas terras transmontanas. Pegou na sua Leica a preto e branco e, sempre acompanhado pela sua mulher, Christine, lançou-se aos caminhos de várias aldeias do concelho de Bragança: Parâmio, Oleiros, Fontes, Lagomar, Soutelo, Maçãs… “Há momentos da vida onde nos sentimos perfeitamente felizes, em harmonia com o mundo”, escreve Christine Dussaud no catálogo (que há-de sair até final do ano), a testemunhar esse reencontro com um mundo que parece perdido no tempo, mas que guarda imagens, respirações e sentimentos que permanecem essenciais.
“Georges Dussaud compreende bem a essência da vida daqueles que vivem no campo, o pulsar da terra e da natureza onde, reiteradamente, imerge”, escreve Jorge da Costa, comissário da exposição e director do CFGD. “A sua obra não se faz do mero intuito antropológico de preservar para memória futura ou apresentar uma tradição folclorista onde se cruzam a condição humana e um território agreste ou arcaico em iminente desagregação”, acrescenta.
Noutro texto para o catálogo, o professor José Rodrigues Monteiro convoca Torga para falar das castanhas de Trás-os-Montes: “(…) o fruto dos frutos, o único que ao mesmo tempo alimenta e simboliza, cai dumas árvores altas, imensas, centenárias, que, puras como vestais, parecem encarnar a virgindade da própria paisagem.”
Na objectiva de Georges Dussaud, as castanhas de Trás-os-Montes — como as vinhas do Douro, as espigas de Montalegre, os gatos do Porto… — são apenas elos de ligação das pessoas à terra íntima que habitam, e que o fotógrafo regista num abraço de discreta afectividade. Sérgio C. Andrade