O degredo de uma utopia na Nova Caledónia

Na sua segunda colaboração, Miguel Loureiro e André Guedes rumam com os deportados da Comuna de Paris, em 1871, para a Nova Caledónia. Nova, Caledónia estreia-se esta quarta-feira na Culturgest, em Lisboa, e vive do paradoxo entre um local paradisíaco e uma colónia penal.

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Pedro Filipe Marques
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E Como Rebolar suspendia a acção em 1871, no momento da deportação dos revolucionários da Comuna de Paris – tida como a primeira tentativa de constituição de uma república proletária – para a Nova Caledónia, após a tomada da cidade pelas forças de Louis Thiers. É desse momento histórico que parte Nova, Caledónia, em cena na Culturgest (Lisboa), entre 26 a 29 de Novembro, com uma vírgula colocada cuidadosamente no título para lembrar que esta é uma leitura repleta de liberdades sobre os acontecimentos que se seguiram, atravessada por uma evocação da contemporânea Belle Époque, por um artigo de jornal de Eça de Queirós sobre o anarquismo, pelo histórico texto J’Accuse de Émile Zola, por diálogos de um filme de Barbet Schroeder ou pela peça Le Bagne, de Jean Genet, entre muitas outras intromissões.

Aos dois autores interessava não apenas dar continuidade a uma colaboração e a uma amizade transportada para o palco, mas também encenar o paradoxo, segundo explica Miguel Loureiro, de ser “no Pacífico Sul, uma área conotada com zonas paradisíacas, que é estabelecida a colónia penal” para onde 4500 communards são enviados. “Achámos que estes dois vectores contrários poderiam dar materiais interessantes. E tal como eles eram um colectivo, com uma opressão mais contextualizada em termos políticos, também nós aqui o somos com uma certa opressão do tempo em que vivemos.”

Mesmo convocando frequentemente os escritos de Louise Michel, porventura a mais destacada dos revolucionários da Comuna de Paris, Miguel Loureiro e André Guedes chamam a atenção para o prazer de estarem juntos (com Cristina Carvalhal, Crista Alfaiate e João de Brito) em palco, até porque as suas perspectivas ideológicas divergem de forma substancial. Se Loureiro confessa “olhar com muito cinismo para todas as questões socialistas ou ligadas à Revolução Socialista”, Guedes admite o seu fascínio pelas “revoluções e aquilo em que elas resultaram e para o que evoluíram” como matéria privilegiada do seu trabalho enquanto artista plástico. “Interessa-me sobretudo o período do final do século XIX porque corresponde a uma infância do pensamento socialista utópico e científico”, justifica Guedes. “E, portanto, todas essas doutrinas começam a ser ensaiadas neste período. Também trouxemos para aqui algumas dessas propostas, que surgem de uma forma algo primária e irrealista.”

“Depois tentámos um acordo porque nem eu nem ele queríamos que a peça ficasse doutrinada politicamente na direcção de um ou de outro”, explica Miguel Loureiro, ainda que confesse não lhe ser fácil dar voz a algumas considerações de Louise Michel sobre o capitalismo. “Mas eu até canto o ‘C’est la lutte finale, groupons-nous et demain’ [refrão do hino socialista A Internacional] e não é com uma perspectiva distanciada. Só deus sabe o que me custa cantar isso”, ri-se.

Entre o surgimento e o declínio

A letra de A Internacional, da autoria de Eugène Pottier, data de 1871, precisamente o ano da deportação dos communards para a Nova Caledónia e é simultânea com o nascimento da Belle Époque. É precisamente na janela entre o surgimento e o declínio da Belle Époque que se concentra a acção em palco de Nova, Caledónia, arrastando toda uma série de outros materiais que entram em diálogo com esse tempo histórico. Também a Belle Époque é recriada no espaço da ilha onde os communards são mantidos reclusos – “Eles não devem ter tido uma grande Belle Époque, mas nós com os paus e as folhas podemos tentar recriar uma”, diz Miguel Loureiro –, sem conseguirem pôr em prática a construção social que idealizavam ou sequer interagir com os caledónios nativos (os canacas). Essa celebração de uma Paris a fervilhar movimentos artísticos e cabarets, deslocalizada, reforça a ideia de falhanço na integração local, ao mesmo tempo que nos diz para onde caminha Paris e que cidade os communards encontram depois de amnistiados em 1880 e devolvidos à sua origem.

Após considerarem trazer a Nova Caledónia para a contemporaneidade, a pretexto das recentes movimentações de anseios autonómicos – que seria igualmente uma forma de traçar um paralelo com a revolta canaca (1878) que acontece durante a permanência dos deportados na ilha –, os autores resistiram e mantiveram o avanço cronológico que pega nos resquícios do espectáculo anterior e detém agora o calendário no fim da Belle Époque. A espaços, como acontece ao cair do pano, Louise Michel é reavivada nesta Nova, Caledónia, com considerações políticas e anarquistas, mas também sobre a etnografia, a fauna e a flora da ilha, perspectivando nos derradeiros minutos “um germinal futuro, para além do anarquismo comunista”. Em seguida, a I Guerra Mundial põe uma pedra em cima da narrativa. Veremos se Miguel Loureiro e André Guedes voltarão a erguê-la.

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