García Márquez: o arquivo do anti-imperialista vai para os Estados Unidos
Manuscritos, cartas, blocos de notas, fotografias e objectos pessoais vão para o Harry Ransom Center, da Universidade do Texas, um dos mais importantes arquivos literários do mundo. Garcia Márquez fica ao lado de autores como James Joyce ou Jorge Luis Borges.
Reunindo manuscritos, blocos de notas, fotografias, correspondência e objectos pessoais, o arquivo de García Márquez, que morreu em Abril aos 87 anos, tem material relacionado com todas as suas obras importantes, incluindo a versão final de Cem Anos de Solidão (1967), dactilografada, que o escritor enviou à editora com uma nota de cabeçalho, e uma cópia de En Agosto nos vemos, o romance em que o escritor estava a trabalhar há dez anos e que deixou por concluir, sendo parcialmente publicado na revista norte-americana The New Yorker e no jornal colombiano La Vanguardia. Entre os objectos pessoais do escritor que vão para o Texas estão duas máquinas de escrever Smith Corona e cinco computadores Apple. E entre as cerca de duas mil cartas do arquivo estão exemplares de trocas com os escritores Graham Greene, Milan Kundera, Julio Cortázar, Günter Grass e Carlos Fuentes. Nos cerca de 40 álbuns fotográficos estão os poucos materiais ligados às actividades políticas do Nobel nascido na Colombia mas exilado no México desde a década de 1960, quando se viu obrigado a deixar Nova Iorque, onde era correspondente internacional, devido à sua defesa pública do regime cubano de Fidel Castro.
Gabo, como era carinhosamente conhecido na América Latina, preferia tratar de política em pessoa ou por telefone. Mesmo assim, o arquivo contém uma carta em que o escritor recusa uma entrevista com a edição espanhola da Life explicando não querer dar com a sua presença a falsa ideia de a revista ser aberta a ideais de esquerda. Há também notas de uma visita em 1998 à Casa Branca, quando perguntou a Bill Clinton se tinha consultores que não fossem “fanaticamente anti-Castro”. Dadas as suas persistentes críticas ao imperialismo americano, não deixa de ser irónico que o seu arquivo acabe por ir parar aos Estados Unidos.
Nos álbuns fotográficos fica também a crónica da vida do escritor, a começar na Colômbia rural da sua família.
Esta segunda-feira, nem o New York Times nem o diário espanhol El País avançavam um valor para a aquisição do espólio, negociada com a família do escritor. Ambas as publicações explicavam apenas que o Harry Ransom Center é um dos mais importantes arquivos literários do mundo, guardando os espólios de nomes tão fundamentais como James Joyce, Ernest Hemingway, William Faulkner e Jorge Luis Borges – entre 36 milhões de manuscritos, um milhão de livros raros, cinco milhões de fotografias e 100 mil obras de arte. Assim mesmo, o anúncio da venda começou já a provocar polémica na Colômbia.
“É uma pena”, disse a ministra da Cultura, Mariana Garcés, citada pelo El País. No entanto, Gonzalo García, um dos dois filhos do escritor, terá dito num programa de rádio que “o Governo colombiano nunca se fez presente nem nunca fez qualquer oferta” – a família tomou a sua decisão porque queria que o espólio de García Márquez estivesse “bem acompanhado”.
“É muito apropriado que García Márquez se junte às nossas colecções. É difícil pensar num romancista de impacto tão abrangente”, disse à imprensa Steve Ennis, o director do Harry Ransom Center.
Segundo o New York Times (NYT), o maior interesse para investigadores poderá residir nos manuscritos dos livros que se seguiram a Cem Anos de Solidão. O espólio, disse ao mesmo jornal Jose Montelongo, um especialista em literatura latino-americana, “é como uma janela aberta sobre o laboratório de um alquimista de renome que nem sempre gostava que as receitas das suas poções fossem conhecidas.
Montelongo, que está ligado à Universidade do Texas, visitou a casa de García Márquez na Cidade do México em Julho, com Steve Ennis, para avaliar os materiais contidos no arquivo. “Mostram as fraquezas, as versões descartadas, as palavras eliminadas. Vê-se de facto a luta da criação.”
Nada que García Márquez encarasse com leveza – o NYT recorda como o Nobel expressou por diversas vezes preocupação ante a perspectiva de ter académicos a olhar para as pistas deixadas para trás e recupera uma citação de 1983 numa entrevista na revista Playboy: “É como ser apanhado em roupa interior.”
Por isso mesmo, Gabo, destruíu as suas notas de Cem Anos de Solidão. “O meu pai era um perfeccionista, e um perfeccionista não mostra o seu trabalho em curso”, disse um dia Rodrigo García, também citado pelo NYT.
Mercedes García, a mulher do escritor, será a responsável pela preservação dos materiais ligados a obras seguintes, sem que o marido se lhe tenha oposto. No entanto, segundo corre na família, logo que Mercedes e Gabo ficaram noivos, Gabo terá tentado comprar de volta as cartas de amor que foi escrevendo a Mercedes – para as queimar. Segundo Rodrigo, o pai costumava dizer: “Tudo o que vivi, tudo o que pensei está nos meus livros.”