Uma lâmina que brilha na noite
São músicos de Sean Riley & The Slowriders, The Poppers, Capitão Fantasma e Riding Pânico, mas esqueçamos as proveniências. Riffs serpenteando, secção rítmica poderosa, vozes saídas de noite misteriosa: os Keep Razors Sharp são uma outra coisa.
Chegou um single, foi editado outro e, quando deram por si, terminada a terceira ida a estúdio, tinham um álbum em mãos. Perder tempo não foi hipótese. Eis então o disco, Keep Razors Sharp. Quatro caras conhecidas, uma banda nova. Rock’n’roll com canções dentro, certamente, alimentado pela capacidade transportadora de uma descarga eléctrica bem medida e pelo mistério de um som que parece alimentar-se das sombras provocadas por luz difusa em noite escura. “Há uma liberdade muito grande e uma total ausência de preconceitos, porque não temos uma estética definida e não nos tínhamos imposto quaisquer objectivos. Íamos simplesmente fazer música de que gostávamos”, explicam. Correu tudo muito bem desde o início. Riffs serpenteando, secção rítmica poderosa, vozes nubladas como nova camada de mistério e coros feitos fantasmagoria (tudo em música de estrutura flexível, mas com verdadeiro corpo de canção).
Foi ali para os lados de Valejas, Queluz de baixo, num complexo de armazéns e de blocos pré-fabricados transformados há vários anos em dezenas de salas de ensaio. O espaço está decorado com grandes camiões, autocarros escolares americanos ou eléctricos lisboetas já fora de circulação. Algures em 2013, Afonso Rodrigues, o Sean Riley de Sean Riley & The Slowriders, contou-nos que algo novo começava a ser criado numa daquelas salas. Cerca de um ano depois, perguntamos a Afonso e a Rai, a metade da banda que conversa com o Ípsilon no bar do Cinema São Jorge, em Lisboa, o que recordam da primeira vez em que os Keep Razors Sharp ainda não baptizados se reuniram para ensaiar. “Não houve a constatação do ‘isto vai ser lendário’ – somos dementes, mas não tanto", graceja Afonso. Mas houve outra constatação: "Isto é fácil." A música saía-lhes naturalmente. Sem dificuldade.
Na sala de ensaio, ouviam-se guitarras reverberando ondas eléctricas (invoquemos o sagrado nome do psicadelismo, apesar da sobreexposição recente) e uma secção rítmica sólida, ruidosa q.b. A sala de ensaios pertencia aos lisboetas Poppers, banda de power pop de devoção britânica (venham os Kinks, os The Who, os Faces e as bandas de garagem que definiram a década de 1960). Dos Poppers, porém, apenas transitara o guitarrista e vocalista Rai. Com ele e Afonso Rodrigues estavam Braúlio, ex-baixista dos Capitão Fantasma, e Bibi, baterista dos Riding Pânico que, mais recentemente, concretizou o projecto Pernas de Alicate. Os quatro conheciam-se dos concertos e da boémia nocturna pelas noites de Lisboa. Transportaram a noite entre copos e conversa para a noite numa sala de ensaios em Queluz de Baixo. Nasciam os Keep Razors Sharp.
Um encontro feliz
O que tinham em comum? Para além de uma tendência natural para a melomania (é pessoal com boas colecções de discos e gosto para as discutir e partilhar), tinham um par de coisas, como a Brian Jonestown Massacre de Anton Newcombe, essa genial e muito inspirada centrifugadora de mitologia pop, ou os Black Angels, cultores do psicadelismo rock enquanto matéria negra. Sendo certo que essa empatia assoma aqui e ali ao longo do álbum de estreia (o riff de guitarra que introduz I see your face, por exemplo), não devemos sobrevalorizá-la – também há por exemplo shoegaze de olhos bem abertos, fixados em nós, na última Scars & bones. A música dos Keep Razors Sharp é o som de um encontro feliz. Diferentes sensibilidades harmonizadas.
“Num momento inicial”, lembra Afonso Rodrigues, “o Rai era quem puxava mais pelo formato canção, porque é quem ouve mais o pop-rock clássico de tradição britânica. Eu estava mais interessado em coisas mais exploratórias, menos estanques, com estruturas mais indefinidas." Rai a conceder que tudo bem, a canção pode ter sete minutos, “mas 'bora lá meter aqui esta melodia só mais uma vez, se não faz-me confusão” – sim, Rai precisa de alguma estrutura e acena com a cabeça para confirmar. Bibi, por sua vez, estava no outro extremo. A ele, era By the sea, canção que é encontro entre o andamento lisérgico dos Jesus & The Mary Chain precoces e a melancolia folk-rock, que fazia confusão. “'Pá, nunca toquei canções na vida. Não sei como se faz isto’”, lamentava-se, conta Afonso. Mais voltas no estúdio, mais som despejado na mistura para corroer o que a canção tivesse de cristalino, e tudo encaixou. Bibi deixou de se sentir confuso, Rai começou a juntar “pedais sem pensar o que poderia sair dali” e abraçou a “exploração de sons diferentes, distantes de tudo aquilo que andava a ouvir”.
Não há espaço para a insatisfação entre as quatro paredes da sala de ensaio (e nos palcos que se lhes sucedem). “Quando começámos, havia as coisas que ouvíamos em comum, entre elas Black Angels e Brian Jonestown Massacre, mas depois aquilo que tinha na cabeça – uns Spacemen 3, Mogwai ou Eight Matchbox B-Line Disaster – era diferente do que traziam o Rai, o Bibi ou o Bráulio”, explica Afonso. Digamos que os Keep Razors Sharp, descritos pelos próprios como “uma secção rítmica forte e colada, uma avalanche de guitarras e vozes que, em vez de se destacarem, se colocam no mesmo enquadramento”, se descobrem nas entrelinhas.
Depois da edição de dois singles há alguns meses, I see your face e 9th, chegou agora o homónimo álbum de estreia. E confirma-se. Isto não é brincadeira de gente entediada com o que andava a fazer da vida (porque não andava). Isto é banda a sério e soa a banda a sério. Rock’n’roll nascido do mistério nocturno, do desejo de escapismo que parece ser, quase sempre, um motor criativo de valor inestimável – rock invocado por um xamã sem nação num deserto imaginado à distância.
O primeiro grande passo está dado. Acreditamos que aquele deserto existe enquanto ouvimos esta banda. Agora é tempo de voltar à sala de ensaios. Nada trazido de fora. Tudo criado lá dentro por estes quatro que descobriram uma banda dentro de si. Manter a lâmina afiada é um trabalho contínuo.