Quando entrei no cemitério dos Prazeres pensava num nome e num número: o nome era Slowacki, Tadeus Waclaw Slowacki, e o número 4664. O Verão estava quase a acabar: era uma manhã de domingo, o sol brilhava num céu sem nuvens e nas ruas de Campo de Ourique não havia ninguém. Caminhava ansiosa por chegar ao destino e comigo trazia a minha câmara e um livro que naqueles dias estava a ler novamente: “Requiem” de Antonio Tabucchi.
Não havia leitura mais adequada para homenagear o meu regresso a Lisboa. Pois claro, sabia que aquela era uma história cheia de personagens e situações criadas pela enorme fantasia do autor, que era pura ficção literária, mas além disso naquele domingo tinha vontade de ver qual era a pessoa que verdadeiramente descansava pela eternidade na tumba 4664: se calhar para ter um contacto com a realidade mas, ao mesmo tempo, também para não me sentir tão afastada daquele mundo ilusório do livro que me estava a tornar mais apaixonada pela cidade.
O cemitério encontrava-se beijado pelo sol, era enorme e à primeira vista parecia-me magnífico. Não conseguindo encontrar o meu destino, um guarda aproximou-se e perguntou-me se estava a procurar a tumba duma santa famosa. Antes de responder-lhe que não e de dizer-lhe o número da tumba que procurava, fiquei um pouco perplexa porque aquele homem me parecia semelhante ao guarda de “Requiem”, assim como Tabucchi a tinha descrito.
Para além disso, aquela pessoa não era muito alta, tinha um enorme sorriso nos lábios e apesar de não me ter ajudado, fiquei contente pela disponibilidade que me ofereceu, como sempre acontece quando se encontram portugueses. Então comecei a caminhar sozinha e a perder-me no fascínio do cemitério; a minha esperança estava quase a desaparecer depois duma longa procura, quando eis que me apareceu a tumba 4664, na qual descansava Joaquim José Marques Leitão de Barros, nascido em 1895 e falecido em 1902.
Tinha acabado a minha missão: tirei uma fotografia à tumba e saí do cemitério. Percorri Campo de Ourique, Domingos Sequeira, Largo da Estrela: aquelas ruas que encontrei pela primeira vez em “Requiem”, quando eram só nomes evocativos que existiam na minha imaginação, mas que agora se tornavam familiares, como uma minha segunda casa que conhecia muito bem, como se fossem as formas do corpo daquela senhora duma certa idade chamada Lisboa, pela qual muitos perderam a cabeça.
Nem só Tabucchi se tomou de amores por ela: eu também e como eu muitas outras pessoas, italianas ou estrangeiras, que conheci em Lisboa ou que nunca foram lá, só seduzidas por um amor platónico e nunca consumado. Todas estas pessoas vão ficar para sempre apaixonadas e também quando regressarem aos seus países nunca se poderão esquecer desta paixão única.
Cheguei à Estrela e entrei no Jardim: sentei-me e peguei no meu livro. Pensei que estava a fazer um sacrilégio por ler “Requiem” em italiano: de facto o livro foi escrito em português porque foi assim que se apresentou num sonho ao escritor que tentou traduzi-lo na sua língua mãe, inutilmente; era uma traição às revelações dos seus sonhos, um estéril exercício de estilo.
“Requiem” era e é a transposição dum sonho alucinado, era e é uma declaração de amor sem tempo por uma cidade, pela cidade do seu coração. Não era possível escrevê-lo numa outra língua que não fosse a portuguesa. E também eu não poderia escrever esta crónica numa outra língua que não fosse o português: um idioma difícil de se aprender, com sons ásperos mas ao mesmo tempo musicais, uma língua sempre elegante e cordial; também para mim, um “lugar de afecto e reflexão”.