Forced Entertainment, uma companhia do universo artístico de Lisboa

Quizoola Lisboa! mostra-nos de novo uma peça emblemática dos Forced Entertainment, desta vez em diálogo com criadores portugueses. É um dos pontos altos do programa Real Magic, com que Tim Etchells se despede do posto de Artista na Cidade 2014.

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Ver a trupe de Tim Etchells foi não apenas uma questão de influência para os Praga, mas também um reforço, “um sentimento de empowerment”, classifica Pedro Penim Alípio Padilha
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“Achei aquilo maravilhoso, aquela sensação de que a peça se vai construindo entre os nossos dedos. Fiquei cheia de inveja, a pensar que adorava saber fazer coisas assim – e não sei se sei”, diz Vera Mantero Agnieszka Wojtun
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Jorge Andrade: “Na Mala Voadora também nos interessa explorar essa fronteira entre a verdade e o artifício e nalguns projectos usamos em cena materiais que fazem parte do nosso quotidiano" Bruno Simão

Tim Crouch, dramaturgo, respondeu com um texto em que lembra: “Aquela gente partia coisas e sujava-se e perdia a postura e lia listas e representava de forma muito séria e usava microfones em sítios acanhados e falava sobre amor e identidade e fragmentação.” Em 1993, quando Crouch assistiu a Club of No Regrets, levado por uma professora, a experiência de assistir a um espectáculo dos FE obrigava a um confronto severo com a definição daquilo que o teatro podia ser. Para uns, funcionava como epifania pela certa, numa dilatação súbita da listagem daquilo que era admissível acontecer em cima de um palco; para outros, a batalha era varrer o grupo de Sheffield para uma zona cinzenta qualquer a que não se pudesse, por medo de contágio, chamar teatro.

“Passámos grande parte dos anos 80 e 90 a discutir se aquilo que fazíamos era ou não teatro. Era extremamente enfadonho”, desabafa Tim Etchells, director dos FE, ao Ípsilon. “Agora, quanto mais não seja, há o entendimento de que o teatro pode ser uma série de coisas diferentes. Inglaterra é um país muito conservador – as peças, os dramas naturalistas, as personagens, estas coisas ainda estrangulam muito a forma como as pessoas escrevem e pensam sobre o teatro.” Mas foi só há cerca de dez anos, calcula Cathy Naden, uma das actrizes do núcleo dos FE, que se aperceberam que o paradigma se tinha alterado. “As pessoas que querem policiar as fronteiras do que o teatro pode ser tiveram de baixar a guarda”, acrescenta Etchells, notando que as ideias mais arrevesadas da convenção teatral começaram a deixar de ser um exclusivo do circuito independente e a infiltrar-se “no National Theatre com autores como a Katie Mitchell”.

Ao recuarmos dez anos na história dos FE, encontramo-los em palco com Bloody Mess, um caos instalando em palco com um fulgor épico em que as músicas de Deep Purple e Bach disputam a atenção debaixo de uma luz strobe e um conjunto de personagens desconexas boicota sistematicamente qualquer hipótese de narrativa. Foi precisamente com esse cenário de desastre iminente que Pedro Penim, fundador e um dos directores do Teatro Praga, se cruzou pela primeira vez com a obra dos FE. “Estávamos em Londres a apresentar um espectáculo e soubemos que eles estavam no Riverside Studios”, recorda. “Eu, o André Teodósio e a Patrícia da Silva fomos ver o espectáculo – estava praticamente esgotado e, portanto, nem sequer ficámos juntos. No fim, tivemos uma sensação muito estranha e que nunca tínhamos sentido em Portugal: uma espécie de pertença a uma família de espectáculos ou de criações para teatro, que se prendia muito com a parte conceptual mas também com a retórica, o tom, a implicação dos actores e a movimentação em palco. Foi muito revelador, nunca tínhamos sentido algo com tanta intensidade.”

Ao mesmo tempo que se dava esse fenómeno de identificação, Penim confessa que foram tomados por “um grande fascínio” que os levou a ver tudo quanto os FE faziam. A forma como o colectivo de Sheffield fazia crer que “o palco era um lugar de infinitas possibilidades surpreendentes” foi determinante para este encontro e era uma ideia em sintonia com aquilo em que o Teatro Praga cria. Ver a trupe de Tim Etchells foi então não apenas uma questão de influência para os Praga, mas também um reforço, “um sentimento de empowerment”, classifica Penim, numa altura em que a companhia portuguesa começava a pisar palcos mais institucionais e a passar pelas mesmas acusações de que aquilo que fazia não era teatro, mas sim “um para-teatro, uma derivação”. “Vê-los deu-nos essa convicção de que estávamos a fazer a coisa certa ou, pelo menos, de que não estávamos assim tão isolados quanto isso.”

Pedro Penim é um dos três performers portugueses convidados a protagonizar a versão lisboeta de Quizoola!, uma colossal proposta de seis horas – os durationals, segundo os FE – em que, à vez, um par toma o palco com uma maquilhagem de palhaço e toma parte num jogo que envolve duas mil perguntas escritas por Etchells e respostas improvisadas na hora. Ao lado de Penim estarão Jorge Andrade (Mala Voadora) e Vera Mantero.

O diálogo em Quizoola!
Após alguma investigação junto de parceiros locais de Etchells enquanto Artista na Cidade 2014, o dedo de Mark Deputter, director do Teatro Maria Matos, seria fundamental na escolha de Penim, Andrade e Mantero para a performance, este sábado, de Quizoola Lisboa! no São Luiz. A peça é um dos destaques evidentes do programa Real Magic, de 8 a 19 de Novembro, durante o qual Etchells e os FE revisitarão parte da sua obra. Esta produção de Quizoola! constitui uma raridade na permissão dada pela companhia inglesa a que alguém fora da sua estrutura interprete algum do seu reportório. Embora Etchells confesse que há uma versão alemã produzida episodicamente sem o seu controlo, “no essencial, a posição da companhia é a de não autorizar versões das peças feitas por terceiros”. “O sentido destas peças está muito ligado à identidade das pessoas que as fizeram e representaram”, acrescenta. “O caso de Quizoola! é mais transmissível porque há um conjunto de regras com que outras pessoas se podem relacionar de forma diferente. E pareceu-me que, no contexto deste grande projecto em Lisboa, seria lógico envolver outros artistas, desenvolver um diálogo e estabelecer um contacto diferente com os artistas da cidade para uma colaboração.”

Para Deputter, Quizoola! significa, entre outras coisas, um regresso à sua primeira oportunidade de programar, em 2002, os FE em Lisboa, aproveitando o bloco temático Perguntadores do festival Danças na Cidade. Mas significa igualmente um recuo até ao início da sua actividade de director artístico. Estava em Viena, em 1988, dedicado a um doutoramento, quando foi convidado a dirigir o centro de artes STUC, ligado à Universidade de Lovaina, na Bélgica. Por sugestão do programador de teatro que cessava funções, Deputter aproveitou a proximidade geográfica e assistiu ao Inteatro Festival de Polverigi, no norte de Itália. Foi aí que descobriu os FE, numa das suas primeiras investidas europeias, com o espectáculo 200% and Bloody Thirsty. “Foi um choque e uma revelação”, recorda. “Nunca tinha visto nada assim. Houve imensa gente a entrar e a sair e eles continuavam com um espectáculo em que estavam o tempo inteiro a falar e a abrir e beber cervejas.” Saiu da sala sabendo que mostrar aquela gente em Lovaina seria a sua primeira missão no STUC. E desde que chegou a Lisboa, em 1995, não descansou enquanto não descobriu um enquadramento para poder trazer a companhia.

Vera Mantero encontrava-se entre aqueles que assistiram à primeira (e também à segunda) apresentação de Quizoola! em Lisboa. Marcada pelo impacto imediato de se ver perante “um exercício muito simples de perguntarem coisas infinitamente, em que eles parecem nem representar muito – claro que sabem-na toda e não estão só a ser eles próprios”, a coreógrafa e performer passou a acompanhar com avidez todas a apresentações dentro e fora do país a que conseguia deitar os olhos. Há dois anos, na Biblioteca Nacional, deslumbrou-se com The Quiet Volume, uma proposta de Etchells e Ant Hampton em que dois espectadores se sentavam lado a lado e recebiam instruções para manusear e descobrir uma história por entre uma pilha de livros. “Achei aquilo maravilhoso, aquela sensação de que a peça se vai construindo entre os nossos dedos. Fiquei cheia de inveja, a pensar que adorava saber fazer coisas assim – e não sei se sei.” Mas essa sugestão estava presente quando, a convite de Etchells, participou este ano no conjunto de instalações Lisbon by Sound, registando uma gravação áudio que deveria ser ouvida numa horta do Campo Pequeno e que tentava estabelecer uma relação com a paisagem.” Uma forma de o som abrir os olhos para um lugar na cidade.

Obedecendo a um critério de escolha dos performers portugueses que pretendia seleccionar três criadores que se “sentissem à vontade numa situação em que se dirigem directamente ao público” e ao mesmo tempo com “uma grande capacidade de improvisação porque as perguntas estão escritas mas as respostas têm de ser inventadas”, explica-nos Mark Deputter, a escolha recaiu também sobre Jorge Andrade. Não sendo um conhecedor profundo da obra dos FE, o fundador da companhia Mala Voadora foi também o eleito para a encenação do inédito escrito por Etchells para a sénior Companhia Maior e é colaborador próximo dos Third Angel, conterrâneos dos FE. Chris Thorpe, actualmente nos Third Angel, afirma em The Contemporary Ensemble existir uma clara linha de continuidade naquilo que a sua companhia cria(va) em relação àquilo que os FE vinham já empreendendo.

A coincidência de olhares sobre o teatro, acredita Jorge Andrade, encontra-se na diluição da linha separadora entre realidade e ficção. “Na Mala Voadora também nos interessa explorar essa fronteira entre a verdade e o artifício e nalguns projectos usamos em cena materiais que fazem parte do nosso quotidiano – notícias de jornal do ano em causa, uma colecção de bibelots ou de selos, um bocado o lado de inventário que eles têm.” Na Mala Voadora, no entanto, a improvisação foi preterida há algum tempo em favor daquilo a que Jorge Andrade chama “uma discussão das ideias à mesa”.

Uma ligação ao nosso teatro
Para Mark Deputter, de facto, a influência dos FE junto do público e dos criadores portugueses é indesmentível. “É uma companhia que conseguiu conquistar um público em Lisboa, tal como aconteceu com outros artistas, como Meg Stuart ou Boris Charmatz. Essa é uma das coisas bonitas na programação – conseguir seguir-se a obra de um autor, apresentando o seu trabalho com regularidade.” Por isso, no caso da companhia de Sheffield, mesmo vinda de longe, Deputter considera que “aquilo que têm para partilhar com o público começa a fazer parte do nosso universo artístico de Lisboa”. E as ligações, traça-as não apenas com os performers de Quizoola Lisboa!, mas também, por exemplo, com Tiago Rodrigues – que em Berenice (2005) trabalhou, entre outros, com Cathy Naden. “Muito do nosso teatro contemporâneo tem essa ligação”, insiste Deputter, “mas não é uma característica de Lisboa, acho que o trabalho deles tem tido um impacto a nível europeu.”

O irresistível fascínio, para uma companhia que nunca levou a palco nem Pinter, nem Tchékhov, nem Shakespeare, parece assim ser o do permanente questionamento do lugar do teatro, das suas regras e dos seus limites, num palco habitado pelo falhanço, pela decadência, pelo caos e pelo humor. O teatro, agora parece óbvio, também pode ser isto.

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