“Nem temos emprego nem somos inseridos em lado nenhum”

O recurso a desempregados e beneficiários de RSI para ocupar postos de trabalho na administração pública, através dos contratos emprego-inserção, está na mira dos sindicatos, que se queixaram à Organização Internacional do Trabalho. O Governo insiste que se trata apenas de quebrar o isolamento social dos desempregados. O IEFP recusa-se a divulgar o número de pessoas que se encontram ao abrigo deste programa, do qual dependem cada vez mais as escolas. O PÚBLICO falou com contratados em emprego-inserção, dos quais três auxiliares de educação.

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Entidades oficiais não dizem quantos desempregados estão a trabalhar com no âmbito dos contratos-inserção Daniel Rocha

Com 39 anos, Alexandre, um licenciado em História com pós-graduação em bibliotecas que até então trabalhara como formador no programa Novas Oportunidades, entregou os cuidados da filha de dois anos às mãos da sogra. Aos cerca de 800 euros que recebia de subsídio de desemprego, passou a somar uma bolsa de “oitenta e poucos euros”, mais seguro de trabalho e subsídios de transporte e alimentação. “O único paradoxo que encontrei era o de não poder ficar. Estava ali com um contrato chamado emprego-inserção, mas, fizesse um bom ou um mau trabalho no CPF, quando o contrato chegasse ao fim não poderia continuar.”

No dia 14 de Agosto, quando terminava o direito ao subsídio de desemprego, Alexandre voltou a ficar desempregado. “Felicitaram-me pelo meu trabalho, mas disseram que era impossível continuar.” 

O ir e não ficar é uma das regras dos contratos emprego-inserção (CEI) e emprego-inserção + (CEI+), os programas que permitem pôr desempregados e beneficiários do Rendimento Social de Inserção (RSI) a fazer “trabalho socialmente necessário” durante um ano. O primeiro destina-se apenas a beneficiários do subsídio de desemprego e do subsídio social de desemprego e o segundo aponta para os desempregados com RSI. Por trabalho “socialmente necessário” a lei entende ser aquele que satisfaz “necessidades sociais ou colectivas temporárias, no âmbito de projectos promovidos por entidades colectivas públicas ou privadas sem fins lucrativos, durante um período máximo de 12 meses”.

Até aqui, todos mais ou menos de acordo. Um dos principais problemas é que, segundo os sindicatos, o Governo está a usar os desempregados de forma abusiva para tapar buracos na administração pública. E, numa altura em que imperam as restrições à admissão de pessoal, há escolas, centros de saúde e serviços da Segurança Social em que os desempregados são quase tantos quantos os funcionários efectivos. “Neste momento, são estes contratos emprego-inserção que permitem que uma série de serviços públicos funcionem. Entre reformas e rescisões, houve 70 mil pessoas a sair da Função Pública, ou seja, quase tantos os desempregados que estão neste momento a trabalhar, na administração pública e não só”, aponta Cristina Andrade, uma activista das questões laborais que trabalhou durante muitos anos no IEFP.

“A linha de atendimento da Segurança Social existe com incríveis debilidades alimentada por desempregados com contratos-inserção”, concretiza ainda Cristina Andrade, para quem “o Governo começa a ter dificuldades em dizer que os CEI não visam suprir lugares permanentes porque são cada vez mais os locais que fechariam, se, de repente, estas pessoas não fossem trabalhar”.

Este é um dos argumentos aduzidos na queixa que a Federação Nacional dos Sindicatos dos Trabalhadores em Funções Públicas e Sociais (FNSTFPS) apresentou em Julho contra o Governo português na Organização Internacional do Trabalho (OIT). “Pôr desempregados a desempenhar funções de carácter permanente e sem perspectiva de emprego futuro é recurso a mão-de-obra barata, escrava mesmo, até porque as pessoas não podem recusar, sob risco de perderem direito ao subsídio de desemprego”, argumenta Luís Pesca, daquele sindicato.

Ao PÚBLICO, o IEFP recusou (até à hora do fecho desta edição) divulgar quantas pessoas estão a trabalhar ao abrigo destes programas. O sindicalista do FNTFPS aponta para cerca de 60 mil. A activista Cristina Andrade fala em perto de 100 mil. Ambos dizem conhecer serviços da administração pública que “estão consecutivamente a chamar desempregados para ocupar lugares vagos”. A isso, Luís Pesca chama de “dinâmica de mudança que põe em causa a própria estabilidade dos serviços públicos, nomeadamente nas escolas ou na Segurança Social, onde os funcionários têm muitas vezes acesso a informação privilegiada, como ficheiros clínicos e contribuições para a Segurança Social, sem terem tido qualquer formação para o efeito”.

Acresce que, durante aqueles 12 meses, estes “desempregados desempenham as mesmas funções que um funcionário normal, apesar de não auferirem dos mesmos direitos. “Não podem tirar férias”, exemplifica Pesca.

O secretário de Estado do Emprego, Octávio de Oliveira, desmente que os CEI não tenham direito a férias. “Em alteração recente, promovida pelo actual Governo, foi consagrado o princípio de poder haver uma suspensão da medida pelo período de 30 dias, permitindo que as pessoas possam utilizar esse período, em que também há uma suspensão das obrigações perante o serviço público de emprego, designadamente de presença e de evidência da procura activa de emprego, como melhor entenderem”, argumentou por escrito, sublinhando que os desempregados continuam a receber subsídio durante a pausa.

Ajudar na inserção
Sem adiantar também quantos desempregados estão abrangidos pela medida, Octávio de Oliveira sublinha que a filosofia é “ajudar na inserção pessoal e social de pessoas desempregadas, orientadas para a integração de públicos mais vulneráveis e com dificuldades acrescidas de retorno ao mercado de trabalho, muitas vezes em situações de desemprego de longa duração”. E acrescenta: “As situações de desemprego de longa duração comportam muitas implicações, como o isolamento pessoal ou a diminuição do nível de auto-estima, pelo que estas actividades constituem, frequentemente, um primeiro passo na integração pessoal e social, quebrando o isolamento e restaurando a confiança, num processo mais global, em que a integração profissional é o passo seguinte.”

O governante lembra de resto que, descontadas as diferenças de nome, o programa existe há décadas. Nos anos 80 chamava-se “ATD-Apoio a Trabalhadores Desempregados”. Nos anos 90 passou a chamar-se “POC Carenciados e Subsidiados”. Octávio de Oliveira nega que os desempregados estejam a ser chamados para preencher postos de trabalho existentes, estando antes a ser integrados “em projectos organizados em benefício da colectividade, socialmente úteis, que de outra forma não seriam desenvolvidos”.

Vítima de um despedimento colectivo, depois de duas décadas a trabalhar como secretária, P., de 49 anos, foi chamada para trabalhar nos serviços de apoio jurídico da Segurança Social. Estava há mais de um ano a receber subsídio de desemprego, à volta de 745 euros. “Aqui pagam-me, além disso, um subsídio de oitenta e poucos euros, mais quatro euros por dia para almoço e trinta euros para os transportes.” Gosta do que faz. “O pessoal é espectacular, ajudo as técnicas no apoio jurídico aos requerentes, o que for preciso. Quando me chamaram, disseram no centro de emprego que eu não podia recusar. Não me importei porque eu queria era sair de casa. Avisaram-me logo que não poderia ficar, nem que gostassem muito do meu trabalho. É isso que não percebo: ao fim de um ano, nem temos emprego nem somos inseridos em lado nenhum”, desabafa.

Quando chegou à Segurança Social, havia nove desempregados naquele serviço. “Já foram seis embora, mas fazem falta. Entretanto, já chegou mais uma, mas provavelmente vão chamar mais porque precisam de gente para fazer o serviço”, conta P., para acrescentar que continua obrigada a comprovar a procura activa de emprego junto do seu centro de emprego. “Tenho de arranjar três comprovativos por mês e, se precisar de ir a entrevistas, dão-me quatro dias para isso. Estou a gostar muito disto, mas parece-me que o que fazia sentido era chamarem os desempregados que não estão a receber subsídio, porque esses é que precisam mais”, defende.

Realidade silenciada
Para Cristina Andrade, estamos perante uma “realidade muito silenciada e que tem vindo a crescer de forma avassaladora”. “Há nos desempregados um manancial de gente sempre disponível para trabalhar porque não pode dizer que não”, acusa, apontando o caso de uma desempregada que recebia 180 euros de subsídio de desemprego, depois de anos a trabalhar em regime de part-time, e que foi “convidada” a trabalhar numa escola a tempo inteiro pelo mesmo dinheiro, acrescido da tal bolsa mensal de 83,84 euros, correspondente a 20% do Indexante dos apoios Sociais (419,22 euros) e dos subsídios de transporte e alimentação.

No caso dos desempregados beneficiários do RSI, o emprego-inserção+, a pessoa recebe 419,22 euros por mês. A entidade contratante paga apenas 10% deste valor caso seja uma IPSS e 20% se for uma entidade pública. O restante pagamento é assegurado pelo IEFP. “Para as empresas, isto é um negócio da China”, insiste a activista.

Convicto de que a denúncia apresentada à OIT vai ser apreciada em Novembro, Luís Pesca agarra-se à esperança de que aquela organização condene o Estado português por incumprimento das convenções internacionais do trabalho. Ao PÚBLICO, o juiz da 1ª Secção de Trabalho da Instância Central do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Rocha e Silva, admite que estes trabalhadores “à força” possam, patrocinados pelos sindicatos, “intentar uma acção judicial visando denunciar que foram chamados a ocupar um posto de trabalho correspondente a uma necessidade contínua e duradoura” da administração pública ou dos locais onde são chamados a trabalhar. “Se a acção tem ou não pernas para andar, dependerá da prova que for feita em tribunal”, explica. “Admito que a lei tenha sido pensada para pessoas de boa-fé, mas há aqui uma área cinzenta que pode propiciar abusos, nomeadamente nos casos em que, para um mesmo posto de trabalho, haja recurso sucessivo a pessoas para trabalhar nestas condições”, avalia o magistrado.

Fora das estatísticas oficiais
O facto de estes desempregados deixarem de constar das estatísticas oficiais do desemprego é, para o sindicalista Luís Pesca a prova cabal de que o Governo procura com isto “maquilhar os números do desemprego”. Sobre isto, o secretário de Estado diz que nada há de novo a acrescentar. O enquadramento destas pessoas na categoria “ocupados”, argumenta, “é o mesmo enquadramento considerado há décadas, desde a existência destas medidas, e consagrado em outros países europeus para medidas semelhantes”.

No caso de Alexandre Simões, primeiro desempregado, depois “ocupado” e agora desempregado novamente, a esperança é que a experiência granjeada no CPF o possa habilitar a trabalhar numa biblioteca. “Há essa perspectiva, mas também não será uma situação de pleno emprego, isto é, se me contratarem, será ao abrigo de um programa de estímulo ao emprego.”

A medida Estímulo Emprego 2014 permite às empresas que contratem desempregados inscritos no IEFP beneficiarem de um apoio financeiro que oscila entre os 2.000 e os 5.000 euros. “Em princípio, ficarei com mais um ano e meio para respirar. Mas pelo menos fico desde já a saber que, se isto se concretizar, voltarei a ter direito a subsídio de desemprego no fim do contrato. Enfim, é isto: 39 anos, uma filha de dois." E uma vida a prazo. 

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