Os novos auxiliares saem dos centros de emprego para os recreios das escolas

São desempregados que celebram Contratos de Emprego – Inserção, que lhes permitem somar ao subsídio de desemprego 82 euros mensais e garantir o pagamento de despesas de alimentação e transporte. O PÚBLICO falou com três candidatos a essa oportunidade: um ex-vendedor de material eléctrico, um especialista na área de restauração e uma mulher que passou por vários empregos e a quem também nunca passou pela cabeça trabalhar no recreio de uma escola.

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O primeiro Contrato de Emprego-Inserção foi “uma alegria” para quem, como Ascensão Josué, diz que “não sabe estar parada” Daniel Rocha
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O desemprego, aos 56 anos de idade, fez Fernando Candeias “entrar em parafuso” Sérgio Azenha
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Para Rui Castro, “tudo é novo e cada dia é um desafio” Regina Coelho

Nalguns estabelecimentos de ensino, já são mais numerosos do que os do quadro, assegura o vice-presidente da Associação Nacional de Directores de Agrupamentos e Escolas Públicas, Filinto Lima, que reclama a criação de vagas e a formação “dos que tiverem perfil para as funções”.

Uma menina sentou-se ao colo de Ascensão e perguntou: “Queres ser minha mãe?”

Ascensão Josué, 54 anos, Agrupamento de Escolas de Carcavelos

Quando entrou pela primeira vez num agrupamento de escolas para exercer a função de auxiliar educativa, Ascensão Josué tinha no currículo vários anos de trabalho. Começou aos 13, a apanhar tomate, pimento e pepino, no Alentejo; depois foi lavar peixe e biqueirão e aconchegá-los em latas de conserva, anos a fio, numa fábrica do Algarve; passou a seguir 12 anos a carregar embalagens com agulhas, na fábrica de Albarrraque, em Sintra, até aquela fechar; e acabou a fazer limpezas num escritório, durante quatro anos.

O primeiro Contrato de Emprego-Inserção foi “uma alegria” para quem diz que “não sabe estar parada”, mas também “um susto”, conta Ascensão. Com a infância das filhas já longe – hoje têm 32 e 33 anos – a perspectiva de ter centenas de crianças a seu cargo, durante os frenéticos intervalos das aulas, foi, ao princípio, uma preocupação. “Mas o que a gente não sabe vai aprendendo”, diz agora, serena.

Antes de ir para os recreios recebeu orientações: que nunca tocasse nos alunos para travar conflitos, porque isso poderia resultar em males maiores; que pedisse ajuda a professores ou à direcção sempre que achasse necessário; e que usasse toda a sua sensibilidade e bom senso para lidar com as crianças, muitas de um meio social desfavorecido.

Três anos depois – a meio do último de três contratos em sítios diferentes, como determinam as regras – deixa mais três conselhos para quem vier a seguir: que se arme com paciência, “que é preciso tê-la”; que “não mostre medo”, ainda que o sinta; e que se prepare para abandonar cada escola “de coração partido”, porque “a saudade que fica é muita”.

É que, “como em todos os empregos, há coisas boas e más” explica. Entre as más está a dificuldade em lidar com os miúdos mais agressivos, que não ouvem um reparo sem ripostar: “Tu cala-te, que não és minha mãe”. “Ou coisas piores, que não me cabe aqui dizer”, acrescenta, envergonhada. Mas o pior de tudo, diz, são “os olhares de meter medo”.

Acontece que as coisas más, pensa Ascensão, estão, de algum modo, ligadas às coisas boas. Porque a revolta dos meninos e meninas que são “mal-educados” tem a mesma origem “daqueles que mostram muita carência”. Reagem de maneira diferente a “vidas difíceis”, acredita. Fala, agora, das crianças que “precisam de miminhos”: “Vão-se chegando à gente, chegando, chegando, e a seguir encostam-se, e a gente vê logo que eles precisam de festinha na cabeça ou de abracinho”. Dá-lhos como se os desse às suas filhas: “Enviuvei tinha a mais velha dez anos e também eu as deixava entregues à escola, porque saía de casa ainda de noite e voltava já era noite. Era atenção ou comida na mesa”.

Do que mais se queixa é da saudade dos filhos dos outros. Ainda há dias regressou a outra escola em que trabalhou – essa do 1º ciclo, com menos crianças – para as rever a todas e, especialmente, a uma menina que um dia se lhe sentou no colo e a deixou sem palavras quando lhe pediu: “Não queres ser minha mãe?”. Nesse dia, aprendeu que “há perguntas a que nunca se aprende a responder”.

“Os alunos dão o mesmo trabalho que a gente deu em criança”, diz Fernando

Fernando Candeias, 58 anos, Agrupamento de Escolas de Coimbra Sul

Fernando Candeias jura que em 57 anos de vida e 44 de trabalho nunca enfrentara um médico a não ser na tropa, quando não estava doente. Foi o desemprego, aos 56 anos de idade, que o fez “entrar em parafuso”. “Ele foi o coração, ele foi a tensão, a cabeça, a depressão, comprei o catálogo todo das doenças, como dizia o Solnado”, conta, agora que já se consegue rir do assunto.

Desempregado depois de quase três décadas a correr o país como vendedor de material eléctrico, passou um ano enfiado em casa, mas tanto andou “de volta da doutora do centro de emprego”, a pedir “um trabalho”, que ela o mandou para a Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental (APPACDM), nos arredores Coimbra.

Foi um choque. Diz que não tem vergonha de dizer que no primeiro mês chorou “todos os dias”: “A gente vai na rua, vê um deficiente e pensa “ai coitadinho”, mas uns passos a seguir vê uns sapatos bonitos numa montra e não se lembra mais disso. Agora estar todos os dias com cem ou 110 pessoas com aqueles problemas é diferente. Nunca contei ver de uma só vez tanta deficiência que está escondida dos olhos da sociedade”, diz. Ali, ajudou a dar de comer e a limpar as crianças e jovens, foi motorista, fez de tudo –  “E sinto-me tão orgulhoso do que fiz”, afirma.

Afeiçoou-se. Diz que deixou “lá o coração”, que já lá voltou para matar saudades e que ainda agora, quando a carrinha da APPACDM passa junto à EB 1 de Torres de Mondego, onde trabalha, todos ficam espantados com a festa que aquelas crianças fazem quando o vêem.

Entrou na escola do 1.º ciclo do agrupamento de Coimbra Sul no dia 22 de Setembro. A ânsia era tanta que quebrou a tradição de não trabalhar no dia de anos e só uma semana depois contou à doutora que lhe tinha “estragado o dia de aniversário”. “Uma brincadeira, que não estragou nada – até foi uma prenda”, esclarece logo a seguir.

Diz que, depois da experiência anterior, tomar conta de 35 meninos, mesmo tendo um necessidades educativas especiais, “é mais fácil que beber um copo de água”. Gosta do seu “povo pequenino”, como lhes chama, “uns mais reguilas, outros menos”, todos a darem “o mesmo trabalho que a gente deu em criança”. Se um faz uma asneira, ele ralha: “Então como é que é pá!?”. “Quando não obedecem à primeira faço-os sentar um bocadinho, mas não muito tempo, que fico com pena deles, e depois digo: 'vá, vai lá brincar, mas não tornas!'”

Dá-lhes o lanche da manhã, toma conta deles nos intervalos, faz com que lavem as mãos antes de regressarem às salas de aulas, limpa o que não consegue evitar que eles sujem, distribui os lanches, e ao fim do dia entrega-os aos pais. Os que sabem que têm os filhos mais reguilas perguntam-lhe: “Então, como é que ele se portou hoje?”. E Fernando responde no mesmo código de cores que usa para os garotos: “Vermelho, amarelo ou verde”. “Quando eu digo: “hoje acho que merece um verde” – isso é que eles ficam contentes!” E ele próprio “feliz”, afirma – “outra vez orgulhoso” do que faz.

Rui aprendeu que “mais vale apostar na conquista do que no confronto”

Rui Castro, 38 anos, Agrupamento de Escolas Dr Costa Matos, de Gaia

Se alguém no Ministério da Educação o quiser ouvir, Rui Castro, de 38 anos, tem muito para dizer. Assegura que que qualquer ministro precisaria de menos de meio dia numa escola para se tornar capaz de corrigir muita coisa, a começar pela falta de formação de gente que, como ele próprio, é colocada a vigiar crianças sem qualquer preparação.

O rol de sugestões que vai reunindo para oferecer aos políticos é imenso, mas preocupa-o especialmente a questão da segurança. Descobriu que a capacidade das crianças para inventarem brincadeiras perigosas aliada ao número insuficiente de funcionários por escola pode dar maus resultados. “Acredita que chegam a aleijar-se dois ao mesmo tempo?”

Quem o ouve há-de pensar que nas escolas há uma guerra. Ele ri-se. Apesar de ter sido responsável pela messe e pelo bar do Quartel da Serra do Pilar, em Gaia, durante sete anos, e de ter trabalhado depois num estabelecimento que antes da crise chegou a servir 80 almoços por dia, nunca chegou psicologicamente tão cansado à sexta-feira, diz.

Cansam-no o barulho, a energia que faz com que os miúdos usem um banco de cimento para lhe saltar por cima e não para se sentarem, a necessidade de repetir mil vezes “não faças isso”, de insistir outras cinquenta que não deitem papéis no chão, o espanto de lhes tirar a bola e de a seguir os encontrar a jogar com um pacote de leite vazio… “Não que não goste do que faço – gosto e muito, nunca contei gostar tanto”, ressalva. “Mas que cansa…”

Diz que há miúdos mal-educados, mas reconhece que tem armas de peso – “Um metro e 86 de altura, vários anos de exército e experiência de arbitragem no andebol”, enumera. Está, no entanto, a descobrir que pode levar melhor as crianças mais difíceis conquistando-as do que através do confronto. Percebeu-o da pior maneira, diz. Quando, a ralhar com um rapaz de uns 12 ou 13 anos lhe perguntou: “O que é que faz o teu pai?”  “Ele respondeu: “Não sei quem é o meu pai, se calhar nem tenho pai”. Quem apanhou o murro no estômago foi ele, Rui, que tem dois filhos. Acabou por o chamar, por lhe dizer que podia contar com ele e hoje nem a criança lhe dá problemas nem o Rui o perde de vista. “Ele e outros só precisam de atenção”, explica.

Isso não significa que seja ingénuo. Ri-se a contar que nos primeiros dias ainda acreditou nos alunos que ia buscar às salas de aulas, para os acompanhar ao gabinete para onde os professores os mandam quando se portam mal. “Cabisbaixos? Não! Saem sempre a resmungar que não fizeram absolutamente nada, que os professores é que embirram com eles! E pensar que ainda me passou pela cabeça que fosse verdade!” Outra gargalhada.

Diz que compreende que “as pessoas que estão há muitos anos na profissão se sintam um pouco saturadas”. Para ele, diz, “tudo é novo, cada dia é um desafio”. Garante que não há cansaço que o fim-de-semana não cure. E que o “não faças isso” que tem de dizer todos os dias “é compensado por outros momentos, mais raros”, como aqueles em que sente que “evitou um problema”. E dá um exemplo: “Se num dia separar dois miúdos que estavam a brigar, os fizer conversar e apertarem as mãos, sentindo que de facto se entenderam e evitando que o caso acabe na direcção… que interessa o resto?”

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