O que é que o mono tem? O reencontro com os Beatles, como queriam que os ouvíssemos
The Beatles In Mono reúne a discografia em vinil mono, o formato predominante da década de 1960 e que os Beatles privilegiavam.
O estéreo não era novo. Cinquenta anos antes, em Paris, fora apresentado o “teatrofone”, que permitia ouvir em casa a ópera da cidade, através de uma ligação telefónica – e podemos imaginar Marcel Proust, um dos subscritores, com dois auscultadores encostados aos ouvidos a apreciar o som da nova tecnologia. Muito faltaria ainda, porém para que o estéreo se massificasse.
Alan Blumlein, que morreria num voo de teste durante a II Guerra Mundial, em 1942, nunca chegaria a ver a sua tecnologia aplicada comercialmente. As primeiras edições discográficas em estéreo surgiriam em 1958 e só se massificariam na década de 1970. Entre um momento e outro, uma banda saiu de Liverpool, estagiou em Hamburgo, mudou-se para Londres, invadiu os Estados Unidos e conquistou o mundo. Chamavam-se The Beatles. Vamos ouvi-los novamente. Vamos ouvi-los com outros ouvidos.
The Beatles In Mono reúne todos os discos de vinil da banda misturados em mono (ou seja, com todo o som processado por um canal apenas), acrescidos da colecção de singles Past Masters (de fora ficam apenas, portanto, Yellow Submarine, Abbey Road e Let it Be, exclusivos em estéreo). Foram misturados a partir das fitas originais e cortados para vinil recorrendo às instruções e tecnologia utilizada originalmente. Em termos de arte gráfica são, igualmente, trabalho perfeccionista: da prensagem das capas à reprodução dos textos de apresentação na contracapa e ao tipo de papel nela utilizado, temos em mãos reproduções perfeitas dos álbuns ingleses da década de 1960 (disponíveis também individualmente). Edições deslumbrantes, de som imaculado. Mas depois da reedição integral e remasterizada da discografia em 2009, depois do lançamento em 2012 dessa mesma obra em vinil estéreo e depois do lançamento das edições americanas, que importância terá The Beatles In Mono?
“Discutir a questão mono versus estéreo hoje em dia parece-me um bocado estranho”, concede Hélder Gonçalves, guitarrista e compositor dos Clã. “O estéreo já se impôs e a coisa mais próxima dessa divisão nos tempos modernos é a luta entre o estéreo e o sistema 5.1.” Para Edgar Raposo, da Groovie Records, editora especializada no rock’n’roll de hoje e em reedições do rock e garage das décadas de 1960 (europeu, sul-americano, asiático), conjuga-se o apelo da nostalgia, “o trazer o passado de novo à ribalta”, com um intuito comercial óbvio. “Falamos das edições originais dos Beatles, que são muito difíceis de encontrar e muito caras. Os coleccionadores sem dinheiro para as adquirir vão dar-se por contentes por ter uma reedição destas”. Bruno Pernadas, músico dos Julie & The Carjackers e autor, a solo, de How Can You Be Joyful In a World Full of Knowledge, álbum de destaque no ano discográfico português, também fala de nostalgia. Ou melhor, de “memória geracional”. Os seus pais têm edições originais dos Beatles, em mono, e foi com elas que Pernadas cresceu. “Ganhamos intuitivamente a memória de um som. Goste-se ou não, é ele que fica na memória”.
Quando falamos dos Beatles em mono falamos, portanto, de nostalgia, de memória afectiva. Afinal, o mono é coisa do passado, tecnologia ultrapassada, dir-se-á, e pregar a sua superioridade equivale a defender que o cinema mudo é notoriamente superior ao sonoro. Digamos que a importância de The Beatles In Mono é, acima de tudo, uma questão de fidelidade. Não é o mesmo ouvir With The Beatles, Hard Day’s Night, Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band ou The Beatles (o álbum imortalizado como White Album) nas suas versões mono ou estéreo. E os Fab Four sempre defenderam que era o mono que correspondia fielmente aos seus desejos criativos. Os Beatles eram banda revolucionária, banda experimentalista em estúdio, arautos de um novo mundo. Conservadores, porém, naquela questão.
Que raio era essa modernice do estéreo? Não era verdade que a esmagadora maioria das casas tinham aparelhagens de uma coluna apenas, mono portanto, e que era esse o formato privilegiado, por mais barato, pela juventude que comprava aos magotes a nova música pop? Não era certo que os técnicos de som e produtores se tinham tornado verdadeiros mestres no formato, criando nele poderosíssima arquitectura sónica? Para que precisaríamos de duas colunas, dividindo o som, enfraquecendo-o, submetendo a qualidade musical ao novo-riquismo de uma tecnologia a que apenas uns poucos privilegiados podiam aceder? Era o que pensava George Martin, era o que pensava Brian Wilson, dos Beach Boys (ajudava o facto de ser surdo de um ouvido e, portanto, não poder produzir em estéreo), era o que defendia o lendário produtor Phil Spector, inventor do “Wall of Sound” e que, não por acaso, deu ao título da antologia da sua obra, editada em 1991, Back to Mono. E era o que afirmava, já em pleno reinado estéreo, John Lennon. Numa entrevista de 1974 citada no livro generoso em fotos e texto incluído em The Beatles In Mono, queixava-se do que haviam feito a Revolution, single de 1968. “A versão rápida foi destruída. Era uma gravação pesada, mas a mistura estéreo transformou-a num docinho”.
Hélder Gonçalves recorda que era com as misturas mono que os Beatles demoravam eternidades até encontrarem o equilíbrio certo. “Quando estava perfeito, viravam-se para um engenheiro de som e diziam ‘agora faz aí uma mistura estéreo em meia hora”. Essa desvalorização do formato, aliada ao reduzido convívio com ele, podia redundar em resultados “algo estranhos”: “Já ouvi canções em que a guitarra do George Harrison, colocada só num dos lados [da mistura], parece não pertencer à canção e soa até meio trapalhona. Mas ouvimos depois a versão mono e soa bem. Percebemos que a guitarra faz todo o sentido assim”.
Eduardo Vinhas, produtor de discos de B Fachada, Norberto Lobo, Pop Dell’Arte, entre muitos outros, nos estúdios Golden Pony que co-fundou em Lisboa, começa por dizer que “hoje em dia já não faz grande sentido pensar exclusivamente em mono”. Ainda assim, há razões práticas, ainda que passíveis de discussão, para o defender. “O estéreo quis trazer a colocação do som no espaço. Trouxe uma perspectiva envolvente, mas também outras complicações. Imaginemos que gravamos uma bateria numa grande sala de madeira e depois gravamos uma voz numa pequena sala de pedra. Cria-se uma estranheza sónica, como se o nosso cérebro não estivesse habituado a interpretar aqueles sinais”. Já no mono, “todos os sons estão na mesma superfície, o que cria um som mais coeso, menos confuso, que exige menos descodificação”.
Ouvir as novas edições, comparando-as com as versões estéreo, é um exercício curioso. Dado que as misturas eram feitas em momentos diferentes, por vezes separadas por semanas, surgem discrepâncias óbvias - uma linha de voz diferente nas harmonias duas versões de Help, uma She’s leaving home mais rápida na versão mono ou uma Helter skelter que, na mesma versão, perde o fade in final, eliminando-se assim o sempre aguardado momento em que Ringo grita para a eternidade: “I got blisters on my fingers”.
No quadro geral, sobressai algo mais curioso. Os primeiros álbuns, mais directos e menos sofisticados, gravados com a banda tocando em conjunto no estúdio como se ocupasse um palco, soam mais vibrantes e intensos nas versões mono – é uma massa de som que nos ataca de frente, sem subterfúgios. Por sua vez, um álbum como Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band, prodígio de trabalho de estúdio, perde algum do seu brilho psicadélico, da sua aura de sonho e da sua vertigem de carrossel sonoro.
Na questão do mono e do estéreo, não há vencedores. Existem dois formatos, adequados a diferentes contextos. “Para uma banda garage muito selvagem, com uma ruideira incrível, não faz muito sentido o estéreo”, defende Edgar Raposo. “É por isso que ainda hoje há bandas que por quererem um som muito sujo, potente, gravam em mono. No caso de bandas que tenham um som mais limpo, mais detalhado, o mono actualmente não fará muito sentido”, defende.
Num dos dias em que trabalhava nas novas edições em Abbey Road, o engenheiro de som Sam Magee demorou-se tempo demais no estúdio. Quando se preparava para regressar a casa, apercebeu-se que o arquivo já havia encerrado. Como não podia devolver as fitas, restou-lhe uma solução. Dormir no estúdio, sem as perder de vista. Não podia correr o risco de que algo acontecesse ao Santo Graal da música pop. Não o permitiria o estatuto dos Beatles enquanto banda mais importante da história da pop, enquanto fenómeno cultural de absoluto destaque na história da segunda metade do século XX.
Uma edição como The Beatles In Mono é a recuperação e fixação, tal como desejado pelos seus autores, de um artefacto valioso. Não é só a música. Por exemplo, o rosto de Paul, John, George e Ringo na contracapa de Beatles for Sale, olhando-nos com expressão cansada, quase aprisionada (foram obrigados a improvisar um álbum para cumprir exigências da editora e o título que lhe deram não era inocente), só tem impacto na dimensão do vinil (numa minúscula capa de CD nada veríamos verdadeiramente).
Obviamente, e até pelo preço (339,99€), esta caixa dirige-se principalmente aos fãs mais fervorosos, a coleccionadores ou estudiosos mais empenhados da história pop. Hélder Gonçalves diz que “como músico, acho sempre óptimo que se continue a fazer coisas à volta dos Beatles”. Mas, acrescenta, “mais bem gravados ou mais mal misturados, o que sobressai sempre é o fabuloso trabalho nas canções”.
Bruno Pernadas enquadra a atenção ao detalhe na reprodução do som e arte gráfica das novas edições “nesta época de revivalismo em que é quase moda dar valor a objectos históricos”. E diz que, se a ideia é reproduzir exactamente a experiência original de audição, então tem que se ir mais longe. “Temos também que ter as agulhas de gira-discos da época e aparelhagens e colunas da mesma altura”. Ele ainda pode fazê-lo. Em casa dos pais está uma aparelhagem dos anos 1960 em óptimas condições. “Ainda funciona”. Alguém lhes leve os "novos" Please Please Me, Help ou Rubber Soul. Terão direito à experiência total.