Estávamos em 4 de Julho de 1966 e os Beatles acordavam num hotel de Manila. Haviam chegado à capital filipina no dia anterior, vindos de uma digressão japonesa que, para eles, marcaria o início de um ponto de viragem. Em Tóquio, no Budokan, enfrentaram a contestação da população que considerava sacrílega a cedência de um espaço religioso ao profano rock'n'roll - as primeiras brechas na imaculada "Beatlemania". O concerto ele mesmo, por sua vez, mostrou-lhes algo que terá sido perturbador.
Há anos que as actuações dos Beatles seguiam um ritual muito próprio: subiam ao palco, o público explodia num berreiro ensurdecedor e, lá em cima, a banda nada ouvia do que tocava, lá em baixo, o público julgava ouvir sem ouvir as canções que conhecia tão bem. No Budokan, o temperamento japonês e a forte presença policial, destacada para manter o bom comportamento da audiência, fez cair a máscara. Os gritos só chegavam no final das músicas e os Beatles perceberam que a banda que, anos antes, num bairro de Hamburgo ou no Cavern em Liverpool, se transformara em máquina rock'n'roll era então, em concerto (em estúdio, o processo ia exactamente em sentido contrário), uma sombra do que tinha sido.
Três dias depois da chegada às Filipinas, seria editado em Inglaterra "Revolver", disco fundamental da discografia dos Fab Four e um dos 14 que, no próximo dia 9 de Setembro, será alvo de reedição remasterizada - são contemplados os 12 álbuns de estúdio britânicos, acrescidos da edição americana de "Magical Mistery Tour" e da colecção de singles "Past Masters". Para os coleccionadores perfeccionistas, haverá uma outra caixa, que reunirá todo aquele material nas misturas em mono originais.
Regressemos a Manila.
É manhã e John, Paul, George e Ringo são acordados por fortes pancadas na porta do quarto. Alguns funcionários do hotel dizem-lhes que se despachem, que se vistam: Imelda Marcos, primeira-dama na ditadura de Ferdinando Marcos, espera-os para uma recepção no Palácio Presidencial. O histerismo da solicitação não os impressiona. "Estamos no nosso dia de folga e não vamos a nenhuma recepção", responde McCartney.
Pouco depois, ao ligar a televisão, os Beatles assistem em directo à sua ausência. Crianças a chorar, Imelda queixando-se da afronta. Nesse mesmo dia, dão dois concertos no estádio de futebol local para mais de oitenta mil. Na manhã seguinte, todos os traços da Beatlemania desapareciam. Até conseguirem abandonar as Filipinas, seriam tratados como inimigos públicos, não como estrelas pop idolatradas.
Geoffrey Giuliano, em "Beatles - a História Secreta" (Ulisseia, 2008), descreve a convulsão das últimas horas em Manila: "A comitiva seguiu para a sala de embarque [...]. Os soldados começaram a maltratar a banda, batendo-lhes com as espingardas, empurrando-os contra as paredes [...]. Os passageiros que esperavam outros voos assobiaram-nos e cuspiram-lhes em cima. De um momento para o outro, começaram a ser desferidos murros, lançando a confusão total. No meio de toda a violência, um brutal golpe atirou Ringo ao chão, que teve de rastejar para a alfândega enquanto era espancado uma e outra vez."
Alguns meses e nova polémica depois, atiçada pela famosa tirada de John Lennon, "Os Beatles são mais populares do que Jesus", a banda dava o seu último concerto, no Candlestick Park de São Francisco. Depois dele, no avião, George Harrison, esfuziante, exclamava: "Está tudo acabado. Posso parar de fingir que sou um Beatle". Os Fab Four estavam a meio da sua carreira discográfica, mas George estava certo. A partir dali, os Beatles podiam parar de fingir que eram os Beatles, os "fine boys", como lhes chamou Ed Sullivan, que o mundo seguira com entusiasmo nos anos anteriores.
Preto e branco enganador
O fenómeno social e cultural que os Beatles representavam, admirado por todos pela sua graça e simpatia, da Rainha de Inglaterra aos miúdos que os perseguiam, iria tornar-se uma outra coisa - uma inaudita revolução musical que abraçou as mais estimulantes manifestações criativas do seu tempo e que, longe de se esgotar nele, se manifesta ainda no presente.
Quando aterraram em Manila, já viviam a cores, já estavam muito distantes da imagem de meninos bonitos, diplomatas e politicamente correctos, que suscitavam uma revolução de costumes por, muito simplesmente, transformarem a pop na banda sonora de uma geração.
Curiosamente, são os Beatles de antes que perduram na memória colectiva. Visualmente, televisivamente, qualquer notícia relativa à banda é acompanhada das mesmas imagens: eles de fato e franja, desembarcando a preto e branco nos Estados Unidos, actuando no Ed Sullivan Show, cantando "Love me do" ou gritando os "yeahs" de "She loves you". Fora do ambiente melómano e/ou beatlemaníaco, a banda de Liverpool é significativa enquanto valor cultural, não musical. Os cabelos compridos que, vistos hoje, são ridiculamente curtos. A música endiabrada que, afinal, não é tão endiabrada quanto isso (falamos, relembre-se de "Love me do" ou "She loves you"). O "peace & love" e os "hippies" e vários tempos amalgamados como se não houvesse mais histórias para além de uma narrativa oficial de agência noticiosa.
Há alguns anos, o vocalista de uma banda de Liverpool, os Clinic, dizia-nos que não tem pachorra para os Beatles e que a sua presença esmagava uma cidade que se tornara um gigantesco parque de diversões temático. Afirmava que a música está tão exposta e tão gasta que já nada há ali para descobrir, nada que aproveitar. Se falarmos dos Beatles de cartão, dos da franja cristalizada como única imagem "verdadeira", os Clinic terão razão. Por isso mesmo, aquilo que de mais interessante poderá sair destes "Beatles Remasters" será, precisamente, o preenchimento de chavões como "melhor banda de sempre" com a matéria que o comprova. Basicamente, uma redescoberta dos Beatles, a banda que, como nenhuma outra, foi porta-voz da sua geração e, ao mesmo tempo, alavanca de mudança.
Se, até "Rubber Soul", os Beatles tinham canalizado os intensos anos de formação em Hamburgo, onde tocavam diariamente, alimentados a álcool e anfetaminas, para uma pop imediata, melodicamente perfeita e de batida denunciando o cabedal rock'n'roll do passado, a partir do momento em que abandonam concertos e digressões, se fecham em estúdio e se abrem ao mundo para além da Beatlemania, começam a construir-se, definitivamente, como a mais importante força criativa da música popular urbana do século XX.
No final de 1966, entrevistado pelo "International Times", o jornal "underground" que ajudara a financiar, Paul McCartney afirmava: "Agora já não existem grandes ídolos. Olhas para as pessoas objectivamente. Perdes aquela coisa de fã. Neste momento, somos cada vez mais influenciados por nós próprios, por aquilo que sabemos que podemos fazer." Esta busca da originalidade pode ter afastado McCartney do fã que fora, num cinema em Liverpool, do Elvis que via em tela, mas despertou decisivamente uma imensa curiosidade pelas expressões artísticas que o rodeavam.
Todas as cores em oito anos
Num especial da revista britânica "Mojo" dedicada ao período psicadélico dos Beatles ("1000 Days That Shook The World"), Barry Miles, amigo pessoal de McCartney e fundador da Indica Gallery onde John Lennon conheceria Yoko Ono, traçava uma panorâmica sobre as movimentações de Macca na "Swinging London": "O seu gosto era eclético e cada semana era apinhada de eventos: uma palestra de Luciano Berio; Cliff Richard em concerto; 'Ubu Roi' de Alfred Jarry. Sentar-se-ia no soalho do UFO Club, a ouvir os Soft Machine e os Pink Floyd e na noite seguinte assistiria a um cabaret no 'Blue Angel'. Andava pela Indica Gallery, ajudou a lançar o 'International Times' e era muito activo no 'underground'. Em casa do John Mayall alargou o seu conhecimento de blues e r&b, e no meu apartamento ouvia Albert Ayler, 'cut-ups' do William Burroughs e John Cage".
McCartney, naturalmente, não estava sozinho. George Harrison descobria a música indiana e consolidava-se enquanto compositor. John Lennon descobria Timothy Leary e o LSD e transpunha para música a sua escrita torrencial. Ringo Starr, por sua vez, trabalhava com os engenheiros de Abbey Road em novos sons, dando rédea livre àquilo que, diz-se, foi a regra principal na gravação de "Revolver": nenhum instrumento deveria soar a si mesmo.
Com George Martin a apoiá-los na concretização de toda aquela explosão criativa, abria-se todo um mundo de possibilidades. O single "Rain" anunciava a alvorada psicadélica e a multi-dimensional "A day in the life", de "Sgt Peppers", representou e representa um pináculo da composição pop. O caleidoscópico "White Album", em 1968, recuperava swings do passado, como "Martha my dear" - a pop como exercício de memória, num tempo em que parecia não existir passado, apenas futuro -, e colocava-os em convívio com o proto-glam de "Savoy truffle" ou com a fúria eléctrica de "Helter skelter". E depois a despedida perfeita, nesse lado B de "Abbey Road" que é suite de dez canções concentrando toda a criatividade de artesãos pop inigualáveis. Resumindo: em curtos oito anos, os Beatles apropriaram-se das regras existentes, quebraram-nas e reconfiguraram-nas. Nesse arrojo, lançaram as fundações daquilo que é o cânone pop contemporâneo.
Pode ser que com as reedições a editar em 9 do 9 de 2009 - referência directa à peça de música concreta, intitulada "Revolution 9", incluída no "White Album" -, haja menos gente a ouvir a fundadora "Tomorrow never knows" - os mil sons de um trance antes do trance - e a questionar-se de que álbum dos anos 1990 dos Chemical Brothers será aquela canção de 1966 dos Beatles. Pode ser que "Helter skelter" seja menos a mensagem do tresloucado Charles Manson e mais a canção incrivelmente apocalíptica, montanha russa em electrocussão para todos os "headbangers" por vir, que McCartney gravou para o magnífico "White Album". Pode ser até que se descubra como os Beatles dos primeiros tempos, os da franja a preto e branco, eram também rock'n'rollers enérgicos e devidamente mal comportados - tudo explicado em "I'm down".
Se isso acontecer, os Beatles continuarão a ser os Beatles, mas ficarão melhor na fotografia de "banda mais importante da história da pop".