Criar um “tecto” para as prestações sociais é “uma falácia” impossível de concretizar em 2015

Poupar 100 milhões de euros com a criação de um tecto para as prestações sociais não contributivas é possível? O Governo parece acreditar que sim, mas não explica como. Especialistas dizem que nem pensar.

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Nas 300 páginas do relatório do Orçamento de Estado para 2015 a palavra pobreza aparece quatro vezes, diz Bagão Félix Paulo Pimenta

A medida, embrulhada numa lógica de incentivo à valorização do trabalho e à mobilidade social, corresponderá a uma poupança de 100 milhões de euros e coube ao ministro do Emprego e da Segurança Social, Pedro Mota Soares, responder às dúvidas que se seguiram:

— Que beneficiários serão abrangidos, ou seja, de que prestações sociais não contributivas estamos falar? — questionou a deputada socialista Catarina Marcelino, durante uma audição no Parlamento.

Pedro Mota Soares deu “o exemplo de uma família que recebe de Rendimento Social de Inserção (RSI) cerca de 375 euros, de abono de família mais de 70 euros, de apoios à renda de casa cerca de 250 euros, um conjunto de apoios à área da educação de 280 euros; recebe um conjunto de apoios e, no final, o rendimento desta família é, muitas vezes, superior ao rendimento de uma família de um trabalhador médio não qualificado”.

O ministro esclareceu ainda que aquele conjunto de prestações sociais vai contar para a condição de recursos (o conjunto de condições que o agregado familiar deve reunir para poder ter acesso às prestações) mas a redução só incidirá nas prestações sociais que substituem rendimentos. “O subsídio social de desemprego é um caso desses, o subsídio social de doença é um caso desses, o RSI é um caso desses”, precisou Pedro Mota Soares.

Sem confirmar a informação adiantada pela ministra das Finanças, Maria Luís Albuquerque — segundo a qual esse tecto poderia fixar-se nos 600 euros —, o ministro remeteu a definição do valor para o Instituto Nacional de Estatística (INE) e esclareceu que os cortes só se aplicarão a pessoas em idade de trabalhar e que a análise dos casos concretos terá de ser feita em articulação com as autarquias e com as instituições sociais.

“Um pretexto para agravar cortes”?
Dito isto, Pedro Mota Soares nada mais adiantou sobre o assunto. Ficou-se assim sem perceber de que fala o ministro quando alude, por exemplo, ao “subsídio social de doença”.

“A não ser que tenha sido criado agora, é algo que não existe. Parece-me mais uma demonstração da ligeireza com que estas coisas são feitas”, reagiu ao PÚBLICO Edmundo Martinho, que presidiu ao Instituto de Segurança Social (ISS), entre 2005 e 2011. O ex-ministro da Segurança Social e do Trabalho, Bagão Félix, admite que Mota Soares se quisesse referir ao subsídio social de parentalidade. “Que é residual”, declarou.

O investigador do Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG), Carlos Farinha Rodrigues, que se tem dedicado ao estudo das políticas públicas de combate à pobreza, desigualdades e exclusão social, também desconhece a existência de uma prestação com aquela designação. “Receio que tudo isto não passe de um pretexto para agravar os cortes que têm existido nos últimos anos, até porque grande parte destes apoios já têm condição de recursos.”

Nos dias que se seguiram ao anúncio do Governo, o PÚBLICO remeteu várias questões a Pedro Mota Soares. Que prestações serão contabilizadas para apurar o total de contribuições recebidas pelos beneficiários? Que apoios em espécie serão contabilizados? De que forma? Que prestações serão afectadas pelo tecto? Como é que o valor [do tecto] será apurado? Que excepções serão tidas em conta? Quando é que o Governo conta ter a medida no terreno? Até à hora de fecho desta edição, não obtivemos respostas. Sendo que às perguntas colocadas pelo PÚBLICO, se somam outras, do ex-presidente do ISS. “Como se faz o cruzamento da informação entre a Segurança Social e as autarquias? Considera-se ou não a utilização das cantinas sociais? E quanto aos apoios em espécie?”, interroga-se Edmundo Martinho, para considerar desde logo que “o cruzamento da informação com as autarquias é, se não impossível, seguramente muito difícil de se fazer, porque não há um sistema que ligue todas estas instituições”.

Mesmo que o caminho siga no sentido de se criar uma plataforma de cruzamento de todos estes dados, “a complexidade administrativa e operacional seria de tal modo”, reforça o ex-ministro Bagão Félix, “que nunca seria possível tê-la a funcionar a 1 de Janeiro”, data da entrada em vigor do Orçamento de Estado. E se assim é, “como é que o Governo consegue ser tão preciso na previsão de poupança de 100 milhões de euros?”

“Para inglês ver”
Para este independente que integrou um governo PSD/CDS-PP, trata-se “de uma previsão orçamental para inglês ver”. Tanto mais que Pedro Mota Soares “junta feijões com batatas”, isto é prestações não contributivas com outras que o são e com apoios que “não são monetarizáveis” sem se correr o risco de entrar no campo da “pura subjectividade”. “Quanto é que custa o transporte a uma câmara que leve os meninos à creche em Ponta Delgada? E em Lisboa?” Por outro lado, prossegue Bagão Félix, “não se pode somar o abono de família às prestações, porque o abono de família não resulta de substituição de rendimentos de trabalho mas do encargo de se ter filhos”.

Acresce que “a proposta de Orçamento de Estado fala em prestações não contributivas substitutivas de rendimento de trabalho, o que, tecnicamente falando, é um conjunto vazio. Porquê? Porque as prestações substitutivas de rendimento de trabalho são todas contributivas, mesmo o subsídio social de desemprego, uma vez que só pode aceder a ele quem tiver descontado”, argumenta, para concluir: “É uma proposta tão confusa e mal preparada, em que não se sabe sequer qual vai ser o tecto. Apesar disso, saber-se que se vai poupar 100 milhões é quase extravagante”.

Descontado aquilo que qualifica como “voluntarismo inconsequente” do actual ministro da Segurança Social, Bagão Félix ressalva que concorda com a preocupação em acabar com a duplicação de subsídios para o mesmo risco social. “Pode acontecer a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e a Segurança Social darem apoios pecuniários para o mesmo risco social, portanto, concordo com tudo o que evite duplicações de apoio para o mesmo problema social”. E concorda também o princípio de que é preciso “não potenciar o risco moral, ou seja, o desincentivo ao trabalho”.

O ex-presidente do ISS reconhece também que “há sempre margem para atribuição indevida das prestações sociais, como nas baixas por doença e nas prestações não contributivas”. Porém, sustenta que o fenómeno é “absolutamente marginal”, dados “os mecanismos em vigor”. Por outro lado, o ex-presidente do ISS recorda que, para a atribuição do RSI, por exemplo, a habitação social já conta como rendimento. “O cálculo da prestação leva em consideração, não aquilo que a pessoa paga pela sua casa, mas o valor técnico da renda”.

4 vezes “pobreza”
Assim, e sublinhando perceber a pertinência de se fazer um cruzamento de informações sobre as diferentes prestações sociais de modo a evitar sobreposições, Edmundo Martinho conclui que não é “com este tipo de limitação artificial” que se travam os abusos. “Aquilo que se está a dizer, no fundo, é que, como as pessoas não trabalham, têm que ver os seus direitos limitados. E, depois de tudo o que se passou — com as limitações ao RSI, ao subsídio social de emprego e ao Complemento Solidário para Idosos — o que nos apresentam são intenções difusas e genéricas que visam apenas poupar algum dinheiro à custa dos que têm menos. Até admito que se possa repensar o modo como os apoios sociais são atribuídos, mas isso tem que ser feito de forma muito séria e ponderada, nunca com base em impulsos de carácter ideológico”.

O provedor da Santa Casa da Misericórdia do Porto, António Tavares, também considera que, “num país com uma taxa de desemprego de dois dígitos, não é por se impor um tecto nas prestações que se vai conseguir aumentar a mobilidade social”.

E Carlos Farinha Rodrigues recorda, por seu turno, que “de 2010 até ao presente, foram expulsos cerca de 47% dos beneficiários do RSI”. “Tudo isto é uma falácia. É verdade que esquemas como o RSI podem gerar desincentivos ao mercado de trabalho, é dos manuais, mas em Portugal esse perigo é fortemente minimizado pelos valores do RSI”, considera.

Considerando que estas transferências sociais, “que são insignificantes no quadro do orçamento da Segurança Social, deveriam ser preservadas enquanto estabilizador mínimo de coesão social”, o investigador do ISEG vaticina: “O que está aqui em causa é mais uma etapa no processo de desresponsabilização do Estado em relação à necessidade da sua intervenção no combate às situações, já não digo de pobreza, mas de pobreza extrema”.

Já o ex-ministro Bagão Félix admite que tenha subjazido ao anúncio dos cortes uma tentativa de desviar as atenções. “Está a haver um excesso de medidas e de preocupações para atacar situações de desajustamento ou até mesmo fraude, que certamente existem, como se o problema das finanças públicas estivesse centrado nesta questão. Numa altura em que andamos a discutir se os contribuintes vão pagar o BES, a questão dos swaps, do BPN, de uma série de maus investimentos de milhões e milhões, o Governo de repente recentra o debate como se o cancro social estivesse nas prestações contributivas. E sabe quantas vezes aparece a palavra pobreza nas 300 páginas do relatório do Orçamento? Quatro”.

Balanço das prestações sociais

— Abono de Família

Em 2013, o abono de família abrangia 1.294.132 beneficiários, bem abaixo dos 1.837.603 beneficiários de 2003. A diminuição decorre da descida de natalidade, mas também da eliminação do 4.º e 5.º escalão e da alteração das condições de elegibilidade que deixou muita gente de fora. Entre as crianças e jovens que se mantêm beneficiários, cerca de um milhão situa-se no 1.º e 2.º escalões, ou seja, provêm de famílias em que o total de rendimentos líquidos de todo os elementos do agregado a dividir pelo número de crianças mais um é igual ou inferior a 419,22 euros mensais. Em 2015, o abono de família vai continuar a sofrer cortes — de 1% —, o que significa que a prestação social vai perder 6,49 milhões de euros. No total, vai contar com 639,04 milhões de euros, contra os 645,53 milhões de 2014.

— Rendimento Social de Inserção

O Rendimento Social de Inserção, a medida destinada a atenuar a pobreza dos pobres com mais baixos rendimentos, tem sido alvo de sucessivos cortes. Em 2009, havia 485.750 beneficiários. Em 2013, 360.153. Por outro lado, se em 2009 o primeiro e o segundo adulto do agregado familiar recebiam 187,18 euros mensais, o terceiro 131,03 e cada criança ou jovem 93,59 (112,30 euros, a partir da terceira), a partir de 2013 o primeiro adulto passou a receber apenas 178,15 euros, o segundo e seguintes adultos 89,07 euros e cada criança/jovem 53,44 euros. Por outro lado, terminaram em 2010 os apoios extra em caso de gravidez. A despesa do Estado com esta prestação reduziu-se em cerca de 40%, passando de 519,9 milhões em 2010 para 315,12 milhões de euros em 2013. Em 2014, o montante desceu ainda mais para os 299,90 milhões. E a proposta de Orçamento de Estado para 2015 prevê um novo corte de 2,8% que significa menos 8,30 milhões de euros. E uma dotação global disponível de 291,6 milhões.

— Subsídio social de desemprego

Foi a prestação que mais contribuiu para a diminuição da protecção social aos desempregados. Entre 2008 e 2013 registou-se uma variação negativa de 16,3% no número de beneficiários deste subsídio, em grande parte devido à alteração das condições de elegibilidade introduzidas em Novembro de 2010. No Orçamento de Estado para 2015 este valor não vem discriminado, mas sabe-se que haverá menos 243 milhões para subsídios de desemprego e apoio ao emprego, numa redução que o Governo sustenta numa previsão da diminuição da taxa de desemprego para 13,4%.

Fonte: Relatório Principais Desenvolvimentos das Políticas de Família em 2013, do Observatório das Famílias e das Políticas de Família; proposta de Orçamento de Estado para 2015

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