A arte da prestidigitação no teatro de guerra
O último espectáculo da Palmilha foi financiado através de crowdfunding. Autor e actores fizeram o que prometiam. Deviam fazer mais e mais.
O esforço adiou a tomada de Varsóvia, mas os polacos foram, como se sabe, derrotados. Esta é a batalha que dá nome ao último espectáculo da Palmilha, financiado através de uma recolha de fundos na Internet, e que assinala o centenário da primeira guerra, ou, os últimos cem anos de guerra. Com as tropas de Putin na zona fronteiriça da Ucrânia, histórias como esta ganham outra ressonância cultural. A abordagem do tema, como se antecipa pelo tom da campanha de crowdfunding, é satírica. Não se esperaria outra coisa deste grupo que mistura o sentido de humor com o desejo da intervenção cívica.
No centro do palco, num tabuleiro de jogo com tanques e soldados em miniatura, decorre uma reconstituição das operações militares da dita batalha, decididas aos dados por três senhores, velhos amigos que se encontram diariamente. Estas três figuras estão vestidas e caracterizadas de modo idêntico, com nariz postiço e uma calva longa de onde saltam tufos de cabelos ruivos, um pouco como se o palhaço Augusto se tivesse tornado palhaço rico. São jogadores relutantes, que levam o seu tempo a decidir as jogadas na sua vez, para desespero dos outros dois. Levam todo o tempo do mundo, aliás.
A peça é uma alegoria das forças e poderes que regem os destinos de milhares nos campos de batalha. Cada um destes senhores pode equivaler a uma potência mundial ou a um comandante-em-chefe, isso pouco importa. São os processos mentais que estão à mostra na interacção entre estas figuras grotescas. O mais importante é ver como cada um age em função do que acredita e como cada um tenta convencer os outros conforme o seu interesse. As estratégias de sugestionamento são pelo menos tão importantes quanto o número de soldados no teatro de guerra ou, já agora, a sorte. Neste aspecto, a linha invisível entre fingimento e real que os actores da Palmilha gostam de atravessar permanentemente nos seus espectáculos coincide quase na perfeição com o espectáculo de contra-informação da diplomacia, da espionagem e da guerra. Basta lembrar que o desembarque na Normandia em 1944 dependeu de uma grande operação de prestidigitação que convenceu os nazis que a invasão aliada seria alhures.
Em vez de jogar, estes três desconversam, mudam de assunto, teimam uns com os outros, enfim, fazem durar a coisa, exactamente como se estivessem à espera de Godot. A batalha interessa-lhes, sim, mas só até certo ponto. Cedo se percebe que existem outros jogos entre eles, paralelos ou debaixo da mesa, que remontam há muitos anos atrás. O principal é a dissimulação, indo da forma mais básica que é a batota ao jogo até à mentira que se sustenta absurdamente por trinta anos. Como se revela no final, vencer não tem outro propósito senão… vencer. A ideologia é só um pretexto.
De engano em desengano, o espectáculo avança, tocando os vários temas levantados, servindo-os com guarnição generosa, graças ao domínio dos tempos de comédia e ao talento para os chistes do grupo. As luzes, cenário e figurinos são impressionantes. Porém, as oposições entre os três clowns sabem a pouco. O que acontece em cena é menos do que se diz em cena, talvez porque no fundo estas personagens estejam todas de acordo. Quando o conflito entre elas fica visível, a peça acaba, algures entre exposição e desenlace, o que é pena. Capazes de cruzar a inspiração beckettiana com o comentário político, em tom satírico e forma alegórica, e buscando no jogo teatral o seu credo, o autor e os actores da Palmilha fazem o que prometem. Deviam fazer mais e mais.