Jardim favorece grupo madeirense em concessões do Estado

A concessão do governo regional ao grupo Sousa para exploração da linha marítima Funchal-Porto Santo foi prorrogada antes de tempo e com alterações contratuais que favorecem o grupo que é conhecido como “dono da Madeira”. Este passou a beneficiar de isenção de rendas, taxas e IVA e a cobrar uma taxa aos passageiros que não constava das regras. Tudo sem concurso público.

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Nunca divulgado nem publicado no Jornal Oficial da Região, o contrato tem sido criticado pela oposição local, por alegadamente incluir cláusulas leoninas que beneficiariam um grupo económico já com o monopólio das operações portuárias no arquipélago. O PÚBLICO teve acesso ao caderno de encargos e ao contrato de concessão, que também não foi submetido à fiscalização prévia do Tribunal de Contas, e verificou que o clausulado do caderno de encargos inicial – que fez excluir outros potenciais interessados na concessão – sofreu alterações significativas, sempre favoráveis ao interessado e seu proponente. O concessionário ficou, por exemplo, dispensado de pagamento da renda da concessão fixada em 20% dos lucros apurados antes de imposto, conforme previa o caderno de encargos.

“Como contrapartida da desistência por parte do proponente Porto Santo Line da exigência de indemnizações compensatórias previstas na sua proposta apresentada a concurso, o concedente desiste da percepção da renda da concessão”, estabelece o novo artigo 18º introduzido no contrato depois da realização do concurso. O caderno de encargos não obrigava o governo concedente ao pagamento de quaisquer compensações indemnizatórias.

A eliminação da renda surpreendeu a assessoria jurídica da presidência do governo regional de então. “Qual o fundamento para a renúncia de um direito essencial da entidade concedente, quando o mesmo direito se encontra regulamentado em certos termos no caderno de encargos?”, questionava o notário privativo da presidência do Governo Regional, José António Câmara num fax enviado ao secretário responsável pelas alterações, a 19 de Fevereiro de 1996.

“A previsão de indemnizações compensatórias no programa de concurso não se efectuou como elemento susceptível de provocar ou não a ´desistência´ por parte da entidade concedente da renda prevista no artigo 18º do caderno de encargos”, lembra o notário da Quinta Vigia, exigindo “esclarecimento por escrito” das alterações feitas também quanto ao início de contagem do prazo para cumprimento de obrigações e o valor da garantia bancária. Questiona igualmente a subconcessão de actividades complementares ou acessórias que “não se encontra submetida ao regime previsto para a actividade principal do caderno de encargos”.

Passados três dias, na véspera de assinar o contrato, o secretário regional da Economia e Cooperação Externa Pereira de Gouveia, em ofício enviado ao notário, justifica que “só se conseguiria manter o equilíbrio económico do contrato entre concedente e concessionário se o concedente desistisse da renda”. E, interpelado sobre a falta do obrigatório parecer do Tribunal de Contas, alega que “do presente contrato não resultam quaisquer responsabilidades financeiras presentes e devidamente quantificáveis que obriguem à sua fiscalização prévia”.

De PPP para concessão
Uma das primeiras cedências do governo ao único concorrente verificou-se três anos antes da celebração do contrato, assinado a 23 de Fevereiro de 1996 pelo secretário regional da Economia e Cooperação Externa, Pereira de Gouveia, em representado do concedente, e Luís Miguel de Sousa, pela concessionária. O executivo liderado por Alberto João Jardim tinha optado por parceria público-privada, como propusera a comissão responsável pelo concurso, mas pela resolução nº 1306/93 resolve “entregar a uma entidade privada a exploração da referida linha”, em detrimento da empresa mista que teria como accionista a PSL (75%) e a Região Autónoma da Madeira (25%).

Após a assinatura do contrato, mantido durante quase duas décadas em segredo, o governo regional, face à exigência por parte do concedente de indemnizações compensatórias não previstas, “desiste de cobrar ao concessionário qualquer renda da concessão, a qual será incluída no lucro da exploração do serviço público a fim de permitir ao concessionário ter uma margem de lucro adequada a autofinanciamento que lhe permita adquirir e substituir os meios necessários à boa exploração”. E acorda em ceder instalações em terra “sem qualquer contrapartida”.

Pelo contrato que teve como objecto principal a atribuição do direito de exploração do serviço público, “feita em regime de exclusivo”, do transporte de passageiros e mercadorias entre as ilhas da Madeira e do Porto Santo, o concessionário ficou “isento, pelo período que durar a concessão, das taxas portuárias do Funchal e do Porto Santo”. As mesmas taxas tinham sido exigidas ao armador madeirense José Silvério Pires que no início da década de 90 tentou, sem êxito, explorar a linha com o “ferryboat” Lusitânia Expresso, protagonista em 1992 da missão Paz em Timor, na sequência do massacre no cemitério de Díli.

O pagamento das referidas taxas portuárias, de que a PSL está isenta, foi um dos motivos que levou o armador espanhol Naviera Armas a suspender, em Janeiro de 2012, a única ligação regular por via marítima entre a Madeira e o Continente (a linha Funchal-Portimão), a qual contribuía para reduzir os constrangimentos da insularidade. Os entraves burocráticos no porto do Funchal levantados, provocando atrasos do desembarque e embarque de passageiros e mercadorias, levaram o armador a considerar-se “expulso” desta ilha, como disse recentemente a um jornal das Canárias.

Além de isentar a PSL de taxas, o governo regional, no contrato celebrado, comprometeu-se a disponibilizar “áreas em terra e de cais necessárias para concessionário construir terminais marítimos dos portos do Funchal e do Porto Santo”. A obrigação do concessionário de construção dos terminais ficou "condicionada à comparticipação do concedente em 70% do financiamento da respectiva construção através do Programa Operacional Plurifundos da Região”.

O concedente que assumiu as despesas com o pessoal no início da exploração da linha, ficou também obrigado a disponibilizar ao concessionário “a utilização de parte de um edifício no porto do Funchal, que fica integrado no estabelecimento da concessão, no qual poderão ser instalados todos ou alguns dos serviços administrativos do concessionário” e onde este pode ainda instalar “postos de venda de produtos comercias ou instalações de bar ou restauração” ou subconceder a sua exploração destas actividades a terceiros, com dispensa de prévia aprovação do concedente”.

O concessionário obrigou-se a propor ao concedente, no prazo de 120 dias a partir da data de celebração do contrato, um navio tipo ferry” – não estava previsto no caderno de encargos - que “ficará exclusivamente afecto a concessão pelo prazo que este durar”.

De acordo com o contrato original, no termo da concessão reverte para o concedente tudo o que nessa data constitua estabelecimento da concessão”. Ficam excluídas deste preceito “as embarcações adquiridas para a concessão pelo concessionário e à sua custa, que ainda não estejam totalmente amortizadas”. Neste caso, “poderá o concedente ficar com as embarcações desde que pague previamente ao concessionário a parte ainda não amortizada”.

Com um preço estimado em 5,5 milhões de contos (27,4 milhões de euros), a construção de um novo ferry foi adjudicada por 34,5 milhões de euros aos Estaleiros de Viana do Castelo, com a comparticipação de 15 milhões de euros da União Europeia e da Região, correspondente a 71,4% da despesa elegível, como refere o relatório da auditoria do Tribunal de Contas (TdC) à aquisição do Lobo Marinho, datado de 12 de Fevereiro de 2004.

Esta acção, inserida no âmbito da fiscalização sucessiva, visou auditar o apoio financeiro concedido, no âmbito do POPRAM III 2000-2006 – componente FEDER, ao projecto do PIDDAR denominado "Novo Navio de Ligação ao Porto Santo", cujo período de investimento previsto era 2001-2003. Segundo o estudo económico-financeiro, apresentado pela PSL em 2001 e citado na auditoria do TdC, “o investimento necessitava de uma taxa de comparticipação financeira de cerca de 55% para que ficasse assegurada a viabilidade do projecto”.

Navio com benefícios fiscais da Zona Franca
O contrato deu ainda à concessionária PSL a possibilidade de “utilizar para o registo das suas embarcações o Registo de Navios”, integrado na Zona Franca da Madeira. Os barcos aqui inscritos usufruem, entre outros benefícios fiscais, da isenção de pagamento do IVA nas actividades comerciais neles desenvolvidas (incluindo não só restauração e bares, como os próprios bilhetes de viagem) e na aquisição de combustível. Beneficiam ainda de um regime fiscal muito favorável com redução de taxas e os seus tripulantes estão abrangidos pelo regime do Segurança Social voluntário, ficando os respectivos salários isentos de qualquer taxa ou contribuição fiscal.

O contrato permite ainda à PSL proceder à “alteração do quantitativo das tarifas a aplicar”, e também ao “trespasse, subconcessão ou a cedência, por qualquer título ou prazo da exploração do serviço a terceiros”, deliberações que, entre outras, “carecem de aprovação do concedente”.

Caso a “exploração seja deficitária”, o contrato dá ao concessionário “o direito ao equilíbrio económico e financeiro de tais actividades, designadamente mediante o alargamento do prazo da concessão ou recurso a outro meio de compensação adequado”.

Em 2006, para justificar a segunda prorrogação do contrato assinado em 1996, o governo regional alegou que “no decurso destes onze e de forma particularmente grave nos três últimos anos, ocorreu uma alteração anormal e imprevisível, pelas dimensões atingidas, das circunstâncias sobre as quais as partes fundaram o equilíbrio de valor entre as prestações a que cada um se vinculou, motivada pelo sucessivo, significativo e incessante aumento do custo do petróleo”.

Entre 2006 e 2011 a concessionária obteve sempre resultados líquidos positivos, acumulando nesse período lucros superiores a 11,5 milhões de euros. Apresentou prejuízos de 498 mil euros em 2005 e de 22,2 mil euros em 2012.

Quando em 2006 foi invocado o “desequilíbrio financeiro” para justificar uma nova e antecipada prorrogação da concessão e a desobrigação dos referidos compromissos que a concessionária deveria assumir durante a docagem anual do Lobo Marinho, a empresa registou um lucro de 920 mil euros. E, em 2008, quando foi introduzida a taxa de combustível para atenuar alegados prejuízos, obteve um lucro 2,4 milhões.

Com um volume médio de negócios na ordem dos 13 milhões, a PSL apresentou o melhor resultado positivo em 2009, com 4,3 milhões de lucro, tendo descido para os 665 mil em 2011, antes de entrar no vermelho no ano seguinte.

A concessionária PSL recebeu várias comparticipações financeira no âmbito de programas comunitários: de 15 milhões de euros em 2004 para a construção do novo navio, de 150 mil euros em 2009 para os terminais de passageiros nos portos do Funchal e Porto Santo, e de 284 mil euros em 2011 destinados ao projecto “Eficiência energética do Lobo Marinho”.

Questionada sobre as isenções concedidas à PSL, a Comissão Europeia respondeu que os “beneficiários das ajudas comunitárias devem cumprir toda a legislação europeia relevante para o período durante o qual o apoio foi atribuído” e considera que cabe às “autoridades nacionais ver se o beneficiário respeita a legislação fiscal”.

Alterações sem concurso
O Código da Contratação Pública restringe a possibilidade de os contratos de concessão serem prorrogados com introdução de alterações, como ocorreram com a concessão da linha marítima da linha Porto Santo. “Em regra, as condições da concessão que fizeram parte do aviso do concurso não podem ser alteradas senão por razões de interesse público ou por alteração objectiva e essencial das circunstâncias que levaram a contratar”, declarou ao PÚBLICO Ricardo Vieira, jurisconsulto especialista em Direito Administrativo.

“As alterações feitas durante a concessão que não tenham por causa o interesse público ou a alteração de circunstâncias, são susceptíveis de ser impugnadas por quem tenha interesse no processo nomeadamente concorrentes preteridos no concurso”, acrescenta aquele advogado que, como frisou, se pronunciava em termo genéricos, sobre um contrato de concessão de serviço público atribuída por concurso público, alegando desconhecimento do processo Porto Santo.

O contrato, celebrado a 23 de Fevereiro de 1996, previa a concessão por 10 anos, prorrogáveis por períodos de idêntica duração. A primeira prorrogação do contrato, até 2015, foi decidida a 13 de Setembro de 2004, e a segunda, passados apenas dois anos, foi aprovada pelo governo regional em 2006, tendo o termo previsto para 11 de Novembro de 2025.

A primeira prorrogação foi assinada pelo secretário do Equipamento Social, Luís Santos Costa, que em Abril de 2007 também subscreve, pelo governo, nova alteração ao contrato, alargando a isenção de taxas portuárias (de entrada e saída, de pilotagem, e de acostagem ou desacostagem) a outras embarcações do tipo porta-contentores que o concessionário venha a fretar. Estas isenções “aplicam-se aos portos do Funchal, do Caniçal e do Porto Santo”, de acordo com esta alteração que também prorroga “por mais de 10 anos, a contar de 12 de Novembro de 2015, ou seja, até 11 de Novembro de 2025”

A alteração ao contrato aprovada em 2007, autoriza ainda o concessionário, “sempre que não seja possível concretizar o afretamento [do navio substituto] no mercado internacional, por inexistência ou indisponibilidade de embarcações ou por inviabilidade económica da operação” a proceder à interrupção do serviço de transportes de passageiro, durante o período em eu a embarcação afecta à concessão se encontre em docagem e ou em manutenção”. No referido período o concessionário apenas está obrigado a garantir uma viagem semanal de um navio de carga contentorizada.

Esta prorrogação que deveria ocorrer até dois anos antes do seu termo, como determina o contrato, foi decidida pelo governo regional nove anos antes da data em que deveria expirar sem recorrer a novo concurso internacional. Na resolução nº 1640/2006, assinada por Jardim, o executivo justifica tal prolongamento para “responder ao legítimo direito da sociedade concessionária à reposição do equilíbrio financeiro do contrato afectado” pelo “incessante aumento do custo do preço do petróleo”. Decide ainda isentar as embarcações da PSL de outras taxas (portuárias, pilotagem, acostagem e desacostagem) e desonerar o concessionário de outras obrigações contratuais, nomeadamente do afretamento dos navios Independência e Pátria, propriedade da Direcção Regional dos Portos e afectos a concessão, assim como dos custos adicionais resultantes do afretamento de uma embarcação que deveria substituir o navio Lobo Marinho quando este se encontrar em docagem anual e em manutenção.

De acordo com a resolução, os custos adicionais do afretamento a que estava o concessionário obrigado, que passaram para a responsabilidade do concedente. Em declarações ao PÚBLICO a secretária regional do Turismo e Transportes Conceição Estudante escusou-se a quantificar tais custos e negou que tenham sido suportados pelo orçamento regional.

O grupo passou também a cobrar uma taxa de combustível que o próprio governo tinha recusado, mas Conceição Estudante nega também que tenha havido “quaisquer alterações à fórmula de cálculo da sobretaxa de combustível. Estando indexado ao preço do barril de petróleo, o valor desta taxa pode alterar-se mensalmente”.

Pela resolução de 2006, o governo regional decidiu que não deveria ser cobrada aos passageiros qualquer taxa de combustível "pois constituiria um forte agravamento das condições inerentes à situação de dupla insularidade da lha do Porto Santo e, consequentemente, um sério revés ao seu actual desenvolvimento". No entanto, apesar de não estar igualmente prevista no contrato, a PSL passou a cobrar, a partir de Março de 2008, uma inédita taxa de combustível que, só três anos depois, viria a ser "autorizada por despacho dado de 25 de Julho de 2011, emitido pela Secretaria Regional do Turismo e Transportes".

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