Bombas na Síria: por onde e para onde vai Obama?
Foi um discurso “realista” sobre o mundo de hoje. Cito uma das passagens iniciais. “Enquanto nos reunimos aqui, um surto de ébola deixa sem capacidade de resposta os sistemas de saúde da África Ocidental e ameaça deslocar-se rapidamente através das fronteiras. A agressão russa na Europa lembra os dias em que as grandes nações espezinhavam as pequenas perseguindo ambições territoriais. A brutalidade dos terroristas na Síria e no Iraque força-nos a olhar para o coração das trevas. Cada um destes problemas exige uma urgente atenção. Mas são também sintomas de um problema global — o fracasso do nosso sistema internacional para manter a paz num mundo interdependente.”
2. Os bombardeamentos na Síria assinalam a extensão de uma tortuosa guerra regional lançada pelos jihadistas do EI e que não conhece fronteiras. A decisão expõe-se a muitas críticas: não se ganham guerras com bombas e sem tropas no terreno; a máquina de propaganda do EI explorará os mortos civis e transformará os ataques em mais uma guerra dos “infiéis” ocidentais contra os muçulmanos; pode redundar numa operação falhada que colocará os americanos perante o dilema de desistir ou enviar tropas para o vespeiro sírio-iraquiano. E, de resto, bombardear o EI na Síria não ajuda de facto Assad? Para a Casa Branca, trata-se de escolher entre o “diabo maior” e o “diabo menor”. No Médio Oriente, fala-se a linguagem da realpolitik.
O objectivo imediato é difícil mas preciso: expulsar o EI do Iraque e enfraquecê-lo na Síria. No Iraque, os americanos têm potenciais aliados para combater no terreno. Na Síria, não. Depois de ter evitado intervir na guerra civil síria, Obama reconhece o EI como uma ameaça maior, não apenas pelo grau de terror mas por dois riscos: destruir o Iraque, ateando uma guerra em larga escala; e lançar uma vaga de fundo jihadista no mundo árabe. O EI inverteu a estratégia da Al-Qaeda.
A destruição do EI é um trabalho de anos — uma herança que Obama deixará ao sucessor. Os EUA tentam explorar um momento em que o EI parece vulnerável. Expandiu-se muito rapidamente graças ao vazio de poder no Iraque e agora tem de se defender em duas frentes.
Mas a principal mensagem é outra. O que Obama diz aos Estados muçulmanos é que este é um “problema colectivo” que a América não pode resolver e que também não pode ser resolvido sem iniciativa americana — combinando a força e a diplomacia.
Recorre à força porque “é a única linguagem que estes assassinos compreendem. (...) Não se pode negociar nem argumentar com o mal”. Mas o uso da força não é o ponto central. O combate — diz — é sobretudo político, ideológico e cultural. É aqui que se ganha ou se perde. Apela “aos muçulmanos” para que rejeitem explicitamente a ideologia de ódio que os extremistas promovem. Só eles o podem fazer. Face ao sectarismo religioso que inflama o Médio Oriente e opõe sunitas a xiitas, só os países e autoridades muçulmanos podem encontrar uma saída. A América permanecerá um “parceiro respeitoso”.
Obama reconhece, implicitamente, a insuficiência da estratégia seguida contra a Al-Qaeda, que se concentrava na sua decapitação, que teve êxitos “militares” mas deixou em aberto a questão política de fundo que agora reemerge em dimensão assustadora.
3. Nos bombardeamentos participam aviões de quatro Estados sunitas. O eixo da política americana consiste em forçar a criação de uma “coligação regional” para combater o EI. De momento, é ainda uma frágil “coligação sunita”. Países como a Turquia e o Egipto estão a ser pressionados para aderirem. O Irão ficará de lado mas a sua colaboração — em nome dos seus próprios interesses no Iraque e na Síria — é lógica e indispensável.
A ideia da coligação regional não é um expediente. É uma nova “fórmula” para responder a crises de que os americanos não se podem alhear mas em que não têm meios para agir “imperialmente”. Esta tese remete para uma outra abordagem e não se afasta muito da ideia que Henry Kissinger defende no seu último livro — World Order —, apontando a necessidade de tratar as crises à escala regional em vez de mundial.
Feito este parêntesis, voltemos à coligação. Esta visa integrar países que têm alta responsabilidade na instalação e na radicalização do jihadismo na Síria. Abriram uma caixa de Pandora e não sabem como a fechar. O objectivo último é ambicioso: forçar o Irão e a Arábia Saudita a convergirem no combate contra o EI e a porem fim às suas “guerras por procuração” que têm desestabilizado e ensaguentado o Médio Oriente. Não se trata de amizade. Permanecerão rivais. Mas os seus interesses tornam realista o cenário de uma “coexistência pacífica”. Tem havido sinais de aproximação. Note-se que tanto Teerão como Riad apoiaram o afastamento do antigo primeiro-ministro iraquiano Nouri al-Maliki, e apoiam o novo Governo “de unidade” em Bagdad.
“Os EUA não têm aliados ou inimigos permanentes nesta guerra sectária”, escreveram há dias Francis Fukuyama e o antigo general e diplomata Karl Eikenberry. Precisam, sim, de “aliados de conveniência”.
4. A atitude perante a Rússia ajuda a perceber o novo estilo da Casa Branca — menos optimista do que antes, mas evitando sempre precipitar-se nas reacções a curto prazo, que podem arruinar os objectivos a longo prazo. Resume o analista Thomas Wright, da Brookings Institution: “Obama desqualifica a Rússia enquanto potência regional e argumenta que as acções de Putin se voltam contra si mesmo. Os EUA punirão a Rússia com sanções mas não reagirão com exagero na Ucrânia. (...) O poderio militar americano não é o principal instrumento para forjar um novo equilíbrio que nos faça sair do caos.”
O discurso foi também uma rejeição do isolacionismo. Conclui Wright: “Hoje [Obama, na ONU], disse a uma audiência mundial que está preocupado por a ordem internacional se estar a desmoronar. Hoje, vê o abismo à sua frente. Hoje, concorda que sem um impulso americano a História pode ser arrastada numa direcção trágica.”
Voltando ao princípio: intervém no Médio Oriente porque percebeu que nenhum outro país, fora os EUA, tem a vontade ou a capacidade de travar o avanço do EI. Os EUA não o podem fazer “unilateralmente”, mas só eles podem construir a coligação.