O cineasta finlandês que criava obras pessoais usando imagens de arquivo

Realizador de dezenas documentários e autor de várias obras de referência sobre cinema, Peter von Bagh tinha 71 anos. O seu último filme Socialism, deverá fechar o próximo DocLisboa, em Outubro.

Foto

O DocLisboa lamentou na segunda-feira o desaparecimento de Peter von Bagh e anunciou que a próxima edição do festival, em Outubro, que já se previa que encerrasse com o seu último filme, Socialism, vai ser toda ela dedicada à sua memória.

Autor de mais de meia centena de filmes, na sua maioria documentários produzidos para televisão, von Bagh era ainda autor de uma extensa bibliografia dedicada à sétima arte, na qual se destacam a sua várias vezes reeditada História do Cinema Mundial, originalmente publicada em 1975, e uma monografia de referência, traduzida em várias línguas, dedicada à obra do cineasta finlandês Aki Kaurismäki.

Foi justamente com os irmão Aki e Mika Kaurismäki que co-fundou, em 1986,  o festival Midnight Sun, que decorre anualmente na Lapónia finlandesa, a norte do círculo polar árctico.

Professor universitário de história do cinema em Helsínquia, cidade onde nasceu e vivia, director de programação do Arquivo Finlandês do Filme nos anos 70 e 80, autor de programas televisivos e radiofónicos, von Bagh foi ainda editor e prefaciador, na chancela Love kirjat, de grandes obras da literatura mundial, de Ésquilo a Balzac, e de obras de referência no domínio do cinema, dos ensaios de Eisenstein aos textos críticos de Godard.

Responsável durante mais de 40 anos pela revista de cinema Filmihullu, foi também argumentista, tendo colaborado frequentemente com o cineasta Risto Jarva.

Mas Peter von Bagh foi ainda um cineasta com obra própria relevante, ainda que pouco conhecida internacionalmente fora do circuito dos festivais de cinema. Os festivais de Roterdão, Buenos Aires e Tromsø, na Noruega, dedicaram-lhe extensas retrospectivas em edições recentes. 

Nas dezenas de filmes que realizou para televisão e cinema, a história da Finlândia e dos seus momentos decisivos ao longo do século XX é um tópico recorrente. Dedicou ainda documentários a vários ícones da cultura popular do seu país, como o músico Olavi Virta ou o atleta Paavo Nurmi, nos filmes homónimos de 1972 e 1978, o político comunista e poeta Otto Ville Kuusinen, em Mies varjossa (1994), ou o realizador Mikko Niskanen, em A Director On His Way to Become a Human Being: The Story of Mikko Niskanen, de 2010.

Entre os seus filmes mais recentes conta-se Helsinki Forever (2008), um retrato da capital finlandesa ao longo dos tempos que um dos grandes nomes do cinema documental, o francês Chris Marker, considerou superior ao célebre Berlim: Sinfonia de Uma Cidade, de Walter Ruttmann.

Em 2010, estreou Sodankylä Forever, uma compilação de conversas com grandes realizadores gravadas em sucessivas edições do festival Midnight Sun. Em 2011, regressou à história finlandesa com Splinters: A Century of an Artistic Family, e em 2013 realizou Remembrance, uma homenagem poética a Oulu, a cidade finlandesa onde viveu boa parte da sua infância e adolescência.

O seu último filme, Socialism (2014), passará em Outubro no DocLisboa, que exibirá ainda Remembrance, na secção Riscos.

O cinema de ficção de von Bagh, que nunca se afasta inteiramente do documentário, inclui The Count (1971), que conta a história de um vigarista que chega a aristocrata com a ajuda da imprensa tablóide, ou a curta-metragem Pockpicket (1968), que, como o título sugere, vira de pernas para o ar o filme Pickpocket (O Carteirista), de Robert Bresson.

Em 1989, Peter von Bagh esteve em Lisboa, numa reunião da FIFA, a federação internacional dos arquivos de cinema, e usou justamente o realizador francês como exemplo para falar do fenómeno de cinefilia que se gerara na década de 70 em torno do Arquivo Finlandês do Filme: “nos anos 70, os filmes de Bresson rendiam mais dinheiro em Helsínquia do que em Paris”, garantiu.

Em Junho passado, no festival de Sodankylä, Peter von Bagh conversou ao vivo com Aki Kaurismäki. Ficou a saber-se, por exemplo, que Von Bargh escolheria para levar para a célebre ilha deserta dos questionários o John Ford tardio O Homem Tranquilo (1952). E o realizador de Le Havre comentou na ocasião o último filme do amigo, afirmando que o documentário Socialism (2014) “mostra que Peter nos andou a enganar este tempo todo, pretendendo ser um tipo duro, quando no seu íntimo é uma pessoa sensível”.

Socialism, que encerrará o DocLisboa, é ao mesmo tempo uma reflexão sobre a grande utopia política do século XX e um olhar sobre a história cinema, dos irmãos Lumière e das comédias de Chaplin a filmes como Roma, Cidade Aberta, de Rosselini, ou O Evangelho Segundo S. Mateus, de Pasolini.

Num comunicado em que lamenta o desaparecimento de Peter von Bagh, a direcção do DocLisboa diz que este foi “uma figura ímpar pelo seu profundo conhecimento da história do cinema, traduzido numa imensa série de livros”. A nota sublinha ainda que “Peter von Bagh não foi apenas um cinéfilo de excepção” e que, “a partir do seu conhecimento de filmes e arquivos cinematográficos ele próprio veio progressivamente a dedicar-se à realização, tornando-se mesmo num caso único de alguém que tendo-se dedicado à preservação do património cinematográfico desenvolveu filmes feitos a partir de imagens de arquivo, obras pessoais e também verdadeiros ensaios fílmicos”. 

Presença regular no DocLisboa desde 2010 – em 2011 foi mesmo o presidente do respectivo júri – a morte de Peter von Bagh “é um momento muito doloroso” para o festival e “uma perda imensa” para “toda a comunidade cinéfila internacional”, lê-se na mesma mensagem.  



Sugerir correcção
Ler 1 comentários